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‘Nossa Constituição será fruto do consenso entre islamistas e seculares’, diz presidente da Tunísia

Moncef Marzouki afirma que o seu país tem mais sorte que as outras nações da Primavera Árabe e se diz contra as leis anti-blasfêmia defendidas por alguns integrantes do governo do qual faz parte

Por Diogo Schelp Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 17 nov 2012, 07h38

Reportagem em VEJA desta semana mostra como a Tunísia, o berço dos protestos que balançaram as ditaduras do mundo árabe, enfrenta um embate ideológico entre a parcela mais secular e moderna da população e os movimentos religiosos conservadores, que defendem a implantação de leis baseadas no Corão, o livro sagrado dos muçulmanos. O tirano tunisiano, Zine El Abidine Ben Ali, caiu em 14 de janeiro de 2011. Durante a viagem ao país do Norte da África, VEJA esteve no esplendoroso Palácio de Cartago, a residência presidencial, para uma entrevista exclusiva com Moncef Marzouki. Médico e ex-militante dos direitos humanos na Tunísia, Marzouki foi escolhido em dezembro de 2011 pela Assembleia Constituinte para formar um governo de transição no país, que inclui um partido islâmico, o Ennahda, e dois partidos seculares. A relação entre as três legendas que dividem o poder é tensa, mas Marzouki defende com entusiasmo os seus colegas islamistas – motivo pelo qual é muito criticado por seus pares seculares.

A Tunísia está mais próxima de se tornar uma democracia do que os outros países da Primavera Árabe? Fazer a revolução é fácil, mas o que vem depois é muito difícil. O governo de transição dura apenas um ano, mas a pressão por resultados é muito grande. Temos que lidar com questões sérias e urgentes, e, ao mesmo tempo, com problemas antigos e enraizados do país, como a corrupção. Mas estou confiante. Se compararmos o que acontece na Tunísia hoje com a situação na Líbia e na Síria, percebemos que o preço que estamos pagando não é tão alto. Talvez sejamos mais afortunados que nossos irmãos sírios e líbios, porque a Tunísia é uma sociedade homogênea, de classe média, com bom nível educacional. Por isso, a transição aqui é um pouco mais tranquila. Também temos sorte porque temos amigos em todo o mundo, e não enfrentamos problemas com nossos vizinhos ou com a Europa. Por isso, penso que precisamos ser bem-sucedidos não apenas por nosso próprio bem, mas para o dos outros países também. Somos um exemplo para a região. Se não formos bem-sucedidos, haverá caos no mundo árabe, porque todos vão dizer: “vejam, não funciona nem na Tunísia”. Mas tenho certeza que vai funcionar.

O senhor citou a Líbia, que, assim como o Egito, hoje vive uma tensão entre aqueles que querem manter a religião separada do estado e aqueles que gostariam de ver o Islã com parte integral do estado. Na Tunísia, qual dessas duas tendências está prevalecendo? Os islamistas compreendem um espectro muito amplo ideologicamente. Na Tunísia, o centro desse espectro é ocupado pelo partido Ennahda. Trata-se do movimento islamista mais poderoso do país. É comparável ao Partido Democrata Cristão da Itália, no sentido de que é um partido islâmico democrata. Os salafistas são uma outra questão. Os salafistas não reconhecem os valores dos direitos humanos e tampouco o sistema democrático como o fundamento do estado. O problema que enfrentamos não é com a parte central do espectro islamista, mas com aquilo que na Rússia ou no Ocidente é chamado de extrema direita. Todo país tem uma parcela do espectro político que entra nessa categoria. Imagino que mesmo na América do Sul vocês tenham algo parecido. A nossa extrema direita é o salafismo. E mesmo o salafismo não é um bloco monolítico. Dentro do espectro salafista há o jihadismo, que defende o uso de métodos terroristas. Estes são uma minoria dentro da minoria. Por isso, não me preocupo tanto com eles e sei que poderemos resolver isso sem violência.

Antes de se tornar presidente, o senhor disse que o Ennahda não é uma ameaça para a democracia. Eu conheci muitas pessoas nesse país que concordariam com o senhor um ano atrás, mas mudaram de ideia. É uma falsa impressão. Eu não concordo sempre com o que o chefe de governo e a equipe de ministros está fazendo, mas deve-se analisar a situação do país com atenção. Não há um único jornalista preso, e não há nenhum jornal, livro ou canal de televisão censurado. Na verdade, o governo é atacado o tempo todo pela imprensa, até mesmo a imprensa estatal. Não vejo os fatos que confirmam essa impressão das pessoas. Tivemos um ou dois casos de tortura policial, e o governo tomou as medidas corretas e os responsáveis estão na cadeia. Não é justo afirmar o contrário sobre o Ennahda. Claro que temos problemas. Mas dizer que agora o Ennahda está tentando instalar uma ditadura é completamente injusto.

Os tunisianos que estão preocupados com as intenções do Ennahda criticam, entre outras coisas, a tentativa dos parlamentares do partido de estabelecer a sharia como principal fonte legal para a Constituição que está em deliberação atualmente. A ala mais à direita do Ennahda tentou colocar a palavra “sharia” na Constituição. Eu disse aos nossos parceiros no Ennahda: “isso não, daqui vocês não passam”. Direitos humanos e sharia, essas são as duas linhas vermelhas dos dois partidos seculares que estão dividindo a responsabilidade do estado o Ennahad. E, de fato, eles voltaram atrás. Temos que garantir que a Constituição será fruto do consenso entre os partidos islamistas e seculares. Essa Constituição será muito respeitosa em relação a direitos humanos. Vamos ter uma ótima Constituição, a dificuldade real vai ser implementá-la.

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Como o senhor responde aos críticos que dizem que a coalizão da qual o senhor faz parte não é verdadeiramente equilibrada, e que o Ennahda detém o poder de fato sozinho? Isso também não é verdade. Nós temos reuniões praticamente todas as semanas e discutimos todas as questões, e as decisões são tomadas juntas. Sim, temos algumas diferenças porque nós viemos de movimentos seculares e eles de movimentos religiosos, então é normal que isso ocorra. Muitas vezes não concordamos com algo. Então temos discussões, mas a coalizão está indo bem.

O senhor acha que os protestos violentos contra o filme sobre Maomé, em setembro, na Tunísia, pode destruir a imagem de moderação que este governo estava construindo no exterior? No dia 14 de setembro, que passamos a chamar de “Sexta-Feira Negra”, ocorreram episódios de violência contra prédios dos EUA, infelizmente. Mas isso foi só numa pequena área de Tunis, a capital. O resto do país estava totalmente pacífico. Mesmo quando se tem um país inteiro pacífico, com estabilidade em toda a parte, uma minoria é capaz de promover atos muito danosos para nossa imagem. Mas trata-se de uma impressão completamente falsa. Esse é o perigo desse tipo de minoria. Eles não são capazes de modificar nossa sociedade em si, mas afetam a imagem da Tunísia no exterior.

O senhor é a favor de impor limitações à liberdade de expressão em questões religiosas? De jeito nenhum. Estou aqui como chefe de estado, mas não posso esquecer que fui durante muitos anos um ativista de direitos humanos. A minha opinião é que os piores efeitos colaterais da liberdade de expressão são muito melhores do que a censura. Essa é a minha opinião e continuarei fiel a ela.

Como o senhor responde aos críticos que dizem que o governo tem evitado reprimir as manifestações violentas dos salafistas, mesmo antes do ataque à embaixada americana? Eu discuti essa questão com o primeiro-ministro (Hamadi Jebali, do Ennahda). Ele disse que a situação ainda é frágil e que talvez não seja de nosso interesse agora ter um confronto com os salafistas. Com base na minha experiência como médico, contudo, acredito que quando se tem um câncer é preciso extirpá-lo no começo. Quanto mais se espera, mais difícil fica curá-lo. Eu disse muitas vezes ao governo que é preciso assumir a responsabilidade, e que não é possível esperar mais. Não acho que podemos resolver esse problema agindo como o ex-ditador Zine El Abidine Ben Ali. Se agirmos dentro da lei, respeitando nossos valores, poderemos resolver parte do problema. Nunca será possível resolvê-lo totalmente. Até a Alemanha tem, até hoje, uma pequena parcela de extremistas de direita, e o governo tem de lidar com eles o tempo todo. É a mesma coisa na Tunísia. Temos que ser sérios e duros, mas se estivermos dentro da lei, não temos o que temer.

Perguntei isso porque, mesmo antes do episódio da embaixada, houve protestos violentos dos salafistas contra exposições de arte, hotéis e universidades, e a polícia também não agiu nesses casos. Nesse meio de ano houve mais 200 exposições de arte e festivais no país. E tivemos apenas seis episódios com confusão. É preciso considerar a escala real do fenômeno.

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Esse governo tem um mandato curto. O senhor assumiu o cargo em dezembro de 2011, e as eleições presidenciais estão marcadas já para junho de 2013. Qual foi a maior conquista desse governo de transição, além de escrever a nova Constituição? É muito difícil ser um governo com mandato curto. Esse governo teve o mérito de manter a estabilidade do país, mesmo que não exatamente da maneira como gostaríamos.

O governo de Ben Ali tinha uma relação boa com a França e com os EUA. O senhor acha que a Tunísia terá agora uma relação diferente com esses países? A Tunísia pertence a muitos espaços geopolíticos. Somos africanos, somos árabes-muçulmanos e também somos mediterrâneos. Por isso, é do interesse nacional da Tunísia ter boa relação com nossos vizinhos africanos, com os países árabe-muçulmanos e também com a Europa. Eu não diria que Ben Ali tinha uma boa relação com França e com os EUA. O regime não era bem aceito. O sujeito era desprezado. Mas agora esses países sabem que nosso país não é governado por um regime corrupto, e que há homens e mulheres respeitáveis no comando da nação. Eles sabem que agora nós pertencemos ao clube dos países democráticos. Acho que agora os EUA e a França agora nos veem como parceiros, e não mais como clientes. Antes a Tunísia era um cliente do Ocidente. Ben Ali sabia que não tinha legitimidade para comandar o país e por isso precisava de apoio do Ocidente. Agora temos essa legitimidade, porque fomos eleitos pelo povo de maneira limpa. Isso significa que as relações com o Ocidente serão mais balanceadas, frutíferas e com respeito das duas partes.

O senhor acha que poderia haver uma normalização das relações diplomáticas com Israel no futuro? Esse não é um problema para agora. Trata-se de uma questão muito complexa. A Tunísia não está ligada diretamente ao conflito árabe-israelense. Claro que apoiamos o direito do povo palestino de ter seu próprio estado com Jerusalém Oriental como sua capital. Claro que apoiamos qualquer processo de paz, e é óbvio que gostaríamos de ver o fim desse pesadelo. Mas não somos o Egito ou a Síria, e não estamos conectados de maneira muito próxima com esse problema.

Como o senhor avalia a importância do Brasil para a Tunísia? Acredito que o mundo árabe é como a América do Sul 30 anos atrás. Vocês passaram pela mesma experiência de transição democrática, após décadas de ditaduras. O mundo árabe é muito próximo da América do Sul, por muitas razões, inclusive pela grande número de emigrantes oriundos do Oriente Médio. Por isso, queremos nos aproximar do Brasil. Temos que aprender com as políticas brasileiras de combate à pobreza. Essa vai ser uma nova era para a diplomacia. Eu cheguei a enviar recentemente um conselheiro ao Brasil para estudar a experiência do Bolsa Família. Não sei se vamos copiar exatamente o mesmo mecanismo, mas com certeza temos muito a aprender.

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