Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana
Continua após publicidade

Nos bastidores da guerra, China move peças para se fortalecer contra EUA

Em meio a mortes e destruição na Ucrânia, potência amplia poder de influência no embate com os americanos pela hegemonia mundial

Por Ernesto Neves, Caio Saad Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h26 - Publicado em 18 mar 2022, 06h00

Quase um mês depois de as tropas de Vladimir Putin invadirem a Ucrânia e desencadearem a maior ação militar em solo europeu desde a II Guerra Mundial, as peças do intrincado xadrez geopolítico global se movem em velocidade espantosa, desenhando uma nova configuração de poder. A Rússia, à custa de morte e destruição, tenta sacudir a irrelevância a que foi relegada com o fim da União Soviética, em 1991. A Europa superou as diferenças internas para se unir contra a sanha expansionista russa, impondo duríssimas sanções ao governo de Moscou e acionando uma rede de abrigo aos ucranianos em fuga. Os Estados Unidos reeditaram seu enferrujado protagonismo internacional, reforçando a aliança militar ocidental, a Otan, e destinando mais de 13,6 bilhões de dólares em ajuda a Kiev. E a China, onde entra nisso? Potência econômica em permanente expansão, com interesses espalhados pelos quatro cantos do globo, ela se equilibra no muro da neutralidade dúbia e movediça, sabendo que, se mover as peças com habilidade, como tem feito, é quem mais tirará vantagem do novo cenário.

OS PARCEIROS - Putin e Xi: a amizade “sem limites” balançou diante da lentidão do avanço dos invasores -
OS PARCEIROS - Putin e Xi: a amizade “sem limites” balançou diante da lentidão do avanço dos invasores – (Alexei Druzhinin/KREMLIN/EPA/EFE)

Antes de jogar no lixo séculos de avanço civilizatório e atacar a Ucrânia, Putin tratou de estrategicamente reforçar os laços com a China, o grande pilar do lado Oriental capaz de lhe dar guarida contra as forças do Ocidente. Único líder de peso a prestigiar a abertura da Olimpíada de Inverno de Pequim, em fevereiro, ele aproveitou o palco para formar dupla com o presidente Xi Jinping. Os dois tiveram “discussões calorosas” e condenaram “a interferência de forças externas em assuntos de países soberanos”. A amizade entre Rússia e China “não tem limites”, afirmou Xi. Àquela altura, as tropas russas já contornavam a fronteira ucraniana, mas o governo chinês, da mesma forma que a maioria dos analistas, devia achar que o bote, se fosse dado, seria rápido e certeiro considerada a imensa superioridade militar. O que se viu, no entanto, foi uma resistência feroz, aliada a um eficiente fluxo de mísseis, drones e equipamentos supridos pelo Ocidente, que freou o avanço dos invasores.

Ao mesmo tempo, europeus e americanos estrangularam a economia russa fechando os bancos e instituições financeiras a todo tipo de transação com o país, congelaram suas reservas, empreenderam uma cruzada contra os oligarcas bilionários que sustentam o regime e cortaram o fornecimento de produtos cruciais, como chips e equipamentos da indústria petrolífera. Quase todas as grandes marcas internacionais, do McDonald’s à Shell, saíram da Rússia, unindo-se à indignação contra a invasão (leia a coluna de Vilma Gryzinski, na pág. 49). Diante da inesperada reação, a China, mais que depressa, tratou de corrigir sua rota, se movimentando com mestria em seu próprio xadrez chinês — o jogo de tabuleiro que envolve uma batalha tática.

APELO VIRTUAL - Zelensky fala aos congressistas americanos: pedido dramático de mais armas e mais ajuda -
APELO VIRTUAL – Zelensky fala aos congressistas americanos: pedido dramático de mais armas e mais ajuda – (J. Scott Applewhite/AFP)

A posição de Pequim, por ora, é não se comprometer com nenhum lado. O Ministério das Relações Exteriores declarou que a Ucrânia tem direito à soberania sobre seu território, mas simultaneamente se recusou a censurar a Rússia na Assembleia-­Geral da ONU. “O pragmatismo da diplomacia chinesa é antigo, vem desde os tempos de Mao Tsé-tung”, lembra Jude Blanchette, especialista do Center for Strategic and International Studies, de Washington. O chanceler Wang Yi garantiu que seu país vai respeitar as sanções internacionais contra a Rússia, mas a operadora de cartões chinesa UnionPay está pronta para ocupar o lugar de Visa e Mastercard, que restringiram sua atuação.

Continua após a publicidade

arte China Europa

Na ordem dos parceiros econômicos, a Rússia é chá pequeno para a China — o comércio entre os dois países representa um décimo do 1,4 trilhão de dólares em bens trocados com os Estados Unidos e a Europa (veja o quadro). “A China tem o direito de salvaguardar seus direitos e interesses legítimos”, traduziu Wang Yi, em bom mandarim. Nem por isso os chineses vão deixar de tirar partido do enfraquecimento econômico da Rússia em tempos de guerra. Em gesto revelador, o embaixador da China em Moscou recomendou, em recente reunião com os principais investidores chineses, que aproveitem a crise para comprar ativos depreciados. Não será a primeira vez. Após a anexação da província ucraniana da Crimeia, em 2014, a Rússia sofreu uma série de punições internacionais. Pequim aproveitou o vazio e, em 2021, o comércio entre os dois países bateu recorde de 147 bilhões de dólares.

ATAQUE CONTRA CIVIS - Resgate em prédio de Kiev: bombas na capital -
ATAQUE CONTRA CIVIS - Resgate em prédio de Kiev: bombas na capital – (State Emergency Service of Ukraine/AFP)

A China é uma potência industrial, mas carece de recursos naturais. A Rússia é o exato oposto. A aproximação entre os dois traz para a China a vantagem extra de ter onde comprar armas, um dos poucos setores em que a Rússia mantém superioridade. Até pouco tempo atrás, Moscou relutava em fornecer aos chineses, notórios copiadores de projetos alheios, mas agora a situação mudou. “Com boa parte do mundo unida para punir a Rússia, a economia já sofre um duro golpe, e o apoio econômico da China é fundamental”, diz Helena Legarda, analista do Mercator Institute for China Studies, com sede em Berlim. Enquanto assume cautelosamente a posição de salvadora da pátria russa, a China trabalha para manter intacta sua ponte para a Europa, cuidadosamente construída por Xi Jinping. Ao longo da última década, os chineses investiram pesado na expansão de empresas para o pujante mercado europeu. “Para assumir a dianteira da globalização, a China sabe que precisa de uma economia aberta e integrada”, avalia Salvatore Babones, sociólogo da Universidade de Sidney.

No rearranjo do tabuleiro mundial, a Europa surge como peça fundamental entre o Ocidente e o Oriente. Os bombardeios incessantes sobre a Ucrânia, que arrasaram cidades como Mariupol e Kharkiv, chegaram nos últimos dias à capital, Kiev, atingindo prédios e aterrorizando civis. O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, depois de pedir admissão imediata na Otan — o que por um lado lhe daria tremendo poderio bélico e, por outro, poderia desencadear a III Guerra Mundial —, admitiu que seu país provavelmente nunca entrará na aliança, o que atende a uma das principais exigências russas. “Passamos anos ouvindo que a porta estava aberta, mas agora dizem que não podemos entrar. E é verdade”, falou Zelensky, pouco antes de trilhar mais uma etapa de seu périplo virtual pelos Parlamentos aliados, desta vez dirigindo um dramático apelo por mais armas e mais ajuda aos congressistas americanos reunidos na Casa Branca.

Continua após a publicidade
TODOS POR UM - Líderes da União Europeia se reúnem em Paris: reação conjunta à guerra fortaleceu o bloco -
TODOS POR UM - Líderes da União Europeia se reúnem em Paris: reação conjunta à guerra fortaleceu o bloco – (Ludovic Marin/AFP)

É na Europa que os Estados Unidos, ainda o país mais poderoso do mundo, tentam se impor na linha de frente da defesa da democracia, lubrificando as engrenagens da Otan, a aliança que, sob seu comando, agregou a Europa Ocidental contra a ameaça do bloco comunista. O bloco virou pó, mas a Otan não só sobreviveu como cooptou países da banda “inimiga”, um dos gatilhos para a deplorável investida de Putin contra o vizinho mais fraco. A imediata e unânime reação dos países europeus à tirania do autocrata russo, no entanto, jogou água fria nos desígnios do governo de Joe Biden — vários estão tomando medidas para, pela primeira vez desde a II Guerra, reforçar orçamentos de defesa e se armar contra novas ameaças. A China, evidentemente, dá apoio incondicional ao movimento. Em longos editoriais, analistas da mídia estatal incentivam a Europa a decidir seu rumo sem interferência americana.

DE NOVO - Policial leva alimentos à população isolada: a economia chinesa sofre com a pandemia -
DE NOVO - Policial leva alimentos à população isolada: a economia chinesa sofre com a pandemia – (./AFP)

A doutrina Xi, que rege a China e deve continuar a fazê-lo por muito tempo, uma vez que ele pretende conquistar novo mandato neste ano, prega a absoluta coesão interna como fator vital para a expansão externa que fará do país a próxima superpotência mundial. Até 2030, prevê-se que o PIB chinês, de fato, passe o americano — este o grande embate deste século, que transcorre em bases distintas da polarização do passado, entre Estados Unidos e União Soviética. A ambição hegemônica de Pequim vem sendo posta à prova pela pandemia — empenhado em zerar as infecções, o governo impõe quarentenas que interrompem cadeias produtivas e afetam os resultados econômicos. A guerra na Ucrânia — sobre a qual Biden e Xi tinham uma conversa virtual marcada para sexta-feira 18 — veio redesenhar, com traços mais firmes, o curso planejado pelos estrategistas chineses para alcançar o topo do mundo. Com a Rússia dependente de seu suporte e entalada em uma guerra possivelmente sem vencedores, com a Europa mais independente e precavida, a China ganhará nova estatura no embate com o rival Estados Unidos. E o mundo, provavelmente, nunca mais será o mesmo.

Continua após a publicidade

Publicado em VEJA de 23 de março de 2022, edição nº 2781

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.