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No reino do absurdo

Duas semanas após sumiço do jornalista Jamal Khashoggi, a monarquia saudita confirma sua morte — e tenta abafar caso com versões cada vez mais estapafúrdias

Por Thais Navarro
Atualizado em 30 jul 2020, 20h05 - Publicado em 26 out 2018, 07h00

Desde que o jornalista saudita Jamal Khashoggi desapareceu dentro do consulado de seu país em Istambul, em 2 de outubro, os emissários da Arábia Saudita já deram diversas versões sobre o caso — e nenhuma para em pé diante das revelações que a Turquia tem divulgado, com base em diversas pistas, fotografias e vídeos colhidos ao longo dos últimos dias. A descoberta mais espantosa veio na forma de um vídeo em que se vê um agente saudita, que entrou no consulado vestindo camisa azul xadrez, saindo do prédio pelos fundos vestido com as roupas de Jamal Khashoggi, de óculos e barba postiça. Só não trocou o par de tênis pelos sapatos do jornalista, possivelmente porque não lhe serviram. As imagens também mostram o falso Khashoggi perambulando pelas ruas de Istambul e visitando a Mesquita Azul, um dos principais pontos turísticos da cidade. Identificado como Mustafa Madani, o agente embarcou para Riad, na Arábia Saudita, no mesmo dia do sumiço de Khashoggi. “As roupas de Khashoggi provavelmente ainda estavam quentes quando Madani as vestiu”, disse um oficial turco à CNN, que divulgou as cenas, vazadas pelo governo da Turquia.

Especula-se que, com o vídeo de um falso Khashoggi andando por Istambul, os sauditas estavam se municiando de uma “prova” de que o jornalista deixara o consulado são e salvo — caso viessem a ser inquiridos a respeito do seu sumiço. Mas o vídeo nem chegou a ser usado para encobrir o desaparecimento do jornalista, pois o caso foi desmascarado antes. E só veio a público, agora, porque as autoridades da Turquia descobriram as imagens e as divulgaram, produzindo mais um constrangimento aos sauditas.

Há duas semanas, os turcos já tinham revelado que um time de quinze agentes sauditas aterrissara em Istambul naquele dia e entrara no prédio horas antes de Khashoggi. Eles saíram de lá com várias malas e retornaram para Riad no mesmo dia. Os sauditas, então, mudaram a versão na sexta 19. Passaram a sustentar que Khashoggi morrera após uma briga no consulado. “É impossível não perguntar como pode ter havido uma troca de socos entre quinze combatentes jovens e Khashoggi, sozinho e impotente”, escreveu Yasin Aktay, amigo da vítima, no jornal Yeni Safak. Dois dias depois, o ministro de Relações Exteriores saudita disse que Khashoggi tinha sido vítima de uma “operação clandestina”. Na quarta, um procurador admitiu que o crime poderia ter sido premeditado.

A única constante entre as quatro versões dadas pelos sauditas — quatro até a quinta-feira passada — é o desejo de livrar o príncipe herdeiro Mohammed Bin Salman, o MBS, de qualquer responsabilidade. A escolha do consulado para palco do assassinato dificulta esse objetivo. “O fato de o crime ter acontecido dentro do consulado, um local oficial, e com várias testemunhas por perto faz com que seja complicado negar o envolvimento do governo saudita”, diz o jurista americano Ronald Rychlak, da Universidade do Mississippi.

Operações para eliminar desafetos no exterior não são inéditas. Em 2006, russos envenenaram o ex-espião Alexander Litvinenko, dissidente e crítico do presidente Vladimir Putin. Ele foi contaminado ao tomar chá em um hotel em Londres. Em 2010, agentes israelenses assassinaram Mahmoud Mabhouh, do Hamas, em Dubai. Eles entraram no país com passaporte falso, hospedaram-se no hotel da vítima, injetaram um relaxante muscular em sua coxa e o sufocaram com um travesseiro. No ano passado, Kim Jong-nam, irmão do ditador norte-coreano Kim Jong-un, foi morto em um aeroporto na Malásia após uma mulher cobrir seus olhos com um pano contendo um agente nervoso.

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Em nenhum desses casos, porém, a cena do crime foi um prédio oficial ou se tentou dar sumiço no corpo, nem os países suspeitos pelo assassinato forjaram versões pateticamente mutantes para o ocorrido. “Enquanto a Rússia tem uma tradição de livrar-se de oponentes, na Arábia Saudita esse é um fenômeno novo. É por isso que eles são tão desastrados”, diz o cientista político israelense Uri Bar-Joseph, da Universidade de Haifa. A lambança poderá ser ainda maior, dependendo do que se descobrir nos próximos dias. De acordo com o canal inglês Sky News, foram encontradas partes do corpo do jornalista no jardim da casa do cônsul saudita em Istambul.

Outro detalhe revelador, fornecido por uma fonte anônima ligada à família real saudita, é que um oficial próximo ao príncipe, Saud Qahtani, teria conduzido o homicídio por meio de uma chamada de Skype. O envolvimento de Qahtani deixaria as coisas ainda mais complicadas para MBS, pois o oficial é apontado como autor de operações nebulosas. No ano passado, Qahtani participou do sequestro do primeiro-ministro libanês Saad Hariri, que acabou renunciando. Com relação ao assassinato de Khashoggi, a imprensa saudita divulgou que Qahtani e quatro oficiais foram demitidos e que dezoito suspeitos estão presos e sob investigação. Em um discurso na terça 23, o presidente turco Recep Erdogan reiterou sua convicção de que generais e oficiais sauditas de alto escalão estão envolvidos na morte do jornalista. “Encobrir uma barbaridade como essa vai certamente injuriar e ferir a consciência de toda a hu­manidade”, disse o presidente. Erdogan está longe de ser um exemplo quando se trata de direitos humanos, mas, desta vez, está certo.

Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2018, edição nº 2606

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