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Livro sobre Snowden começa como thriller e termina em manifesto

Apesar do ritmo inicial de filme de ação, 'Sem Lugar para Se Esconder' traz pouquíssimas informações novas sobre o alcance da espionagem americana e cansa o leitor com doses de autoindulgência e discursos em defesa própria

Por Diego Braga Norte 1 jun 2014, 16h05

Um jornalista de um dos mais importantes jornais ocidentais, uma documentarista que trabalha em um filme sobre espionagem e um sujeito misterioso que só se comunica por meio de mensagens criptografas encontram-se em um luxuoso hotel em Hong Kong. Parece o argumento inicial de um filme de ação, mas é o início do livro do advogado e jornalista americano Glenn Greenwald, “Edward Snowden, a NSA e a espionagem do governo americano”. Lançado quase concomitantemente nos Estados Unidos e no Brasil, Sem Lugar para Se Esconder (Editora Primeira Pessoa, 288 páginas, 39,90 reais em papel ou 24,90 em e-book), é uma mescla de livro-reportagem, narrativa policial e manifesto. Mesmo que os capítulos sejam bem estruturados e com temas centrais definidos, a mistura de gêneros permeia toda a obra e faz com que ela perca força, mantendo um foco difuso e comprometendo tanto o objeto do livro como o interesse do leitor.

Colunista do jornal britânico The Guardian e advogado experiente, Greenwald entrou no jornalismo escrevendo sobre violações de direitos civis por parte dos governos. Sua atuação chamou a atenção de Edward Snowden, um analista de segurança digital que trabalhava como terceirizado para a Agência de Segurança Nacional americana (NSA, na sigla em inglês). Durante meses Snowden tentou entrar em contato com Greenwald, que o ignorou. Nos e-mails que o analista enviou ao jornalista havia sempre recomendações para instalar programas de criptografia de dados para que ambos pudessem conversar em segurança, via computador. A complexidade das instruções técnicas foi um dos motivos que levou Greenwald a se afastar de Snowden. O analista então mudou sua abordagem e foi atrás de Laura Poitras, uma documentarista americana que tem no currículo, entre outras obras, o filme My Country, My Country (2006), sobre a ocupação americana no Iraque, que concorreu ao Oscar em 2007. Poitras estava fazendo um documentário sobre espionagem e sua atuação nos bastidores para levantar dados para seus filmes foi notada pelo governo americano.

Divulgação

Capa do livro 'Sem Lugar para Se Esconder'
Capa do livro ‘Sem Lugar para Se Esconder’ (VEJA)

Capa do livro ‘Sem Lugar para Se Esconder’

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​Laura conhecia Greenwald e ambos se encontraram casualmente em Nova York. O jornalista, que mora no Rio de Janeiro, estava na cidade para uma série de palestras. Era abril de 2013 e o encontro daria início ao vazamento de documentos confidenciais considerado o mais importante da história. O começo do livro tem ritmo de thriller policial e descreve os pormenores das conversas entre Snowden, Greenwald e Laura, que culminariam em um encontro sigiloso em Hong Kong. Enviado à cidade pelo Guardian, Greenwald tinha a missão de entrevistar Snowden e comprovar a veracidade de seus documentos e suas intenções. Por trás da imagem de um nerd frágil, magro, com uma tez de quem não toma sol há meses, óculos e um cavanhaque ralo, escondia-se um especialista experiente em cibersegurança e um hacker talentoso. Longe de ser apenas um ‘analista’, Snowden trabalhou na CIA (agência de inteligência americana) entre 2005 e 2010, tendo assessorado diretamente o então presidente George W. Bush em uma importante reunião da Otan, na Europa. Atuando disfarçadamente com credenciais diplomáticas, Snowden morou em Genebra entre 2007 e 2010. Depois saiu da agência e foi trabalhar na NSA como prestador de serviços. A NSA é a maior agência de inteligência do planeta e conta com cerca de 90.000 funcionários, sendo quase 60.000 terceirizados.

A primeira reportagem de Greenwald com o material surrupiado por Snowden foi publicada em 6 de junho de 2013 e informava como a NSA coleta diariamente dados telefônicos de milhões de americanos contando com a ajuda da Verizon, uma das maiores operadoras de telefonia do país. A revelação causou um abalo sísmico na política dos EUA e, pouco depois, na medida em que o trabalho de Greenwald prosseguia, o terremoto seria internacional. Todos os governos espionam e sabem que são espionados, mas ninguém poderia imaginar o potencial técnico dos americanos, que são capazes de coletar praticamente todas as formas de comunicação on-line e telefônicas do mundo. A repercussão foi global, a chanceler alemã Angela Merkel ligou furiosa para o presidente americano Barack Obama para reclamar que teve seu telefone pessoal grampeado e seu computador invadido. No Brasil, a presidente Dilma Rousseff também manifestou indignação pela invasão de computadores da Petrobras, do Ministério de Minas e Energia e em outros setores do governo. Dentro dos EUA, entidades civis e congressistas dos dois maiores partidos passaram a pressionar a Casa Branca para modificar as atribuições da NSA.

Saiba mais: Eu espiono, tu espionas, nós espionamos…

Como narrativa policial, o livro vai bem, mas como reportagem ele escorrega em comentários pessoais e adjetivos. Com isso, os fatos substantivos e os leitores saem perdendo. Em mais de uma oportunidade Greenwald exalta a si próprio e o caráter de Snowden. “Sua decisão [de Snowden] fora movida por um espírito de destemor, paixão e força. Para fazer justiça ao seu sacrifício, eu estava decidido a imbuir meu trabalho jornalístico do mesmo espírito”, escreve o autor em uma passagem. Frases como essa não acrescentam nada ao livro, pelo contrário, deixam-no enfadonho, com um tom autoindulgente. A parte reservada às revelações dos documentos aos quais Greenwald teve acesso também é decepcionante. Salvo uma ou outra história inédita – apenas uma de grande impacto – praticamente tudo que ele nos mostra já havia sido divulgado em reportagens, com menos riqueza de detalhes. Os capítulos finais do livro são dedicados a uma exaustiva e desnecessária autodefesa, escrita num tom de discurso em prol da liberdade de imprensa – algo muito importante, sem dúvida, mas que contamina a pretensão de livro-reportagem e o andamento rítmico da obra.

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Na esteira dos atentados de 11 de setembro de 2001, os EUA aprovaram uma série de leis para proteger o país de futuras ações terroristas. A justificativa era que, para preservar a vida de todos, era indispensável invadir a privacidade de alguns. Quando candidato, Obama se manifestou contra a iniciativa e prometeu acabar com o que chamou de “grampos ilegais dos cidadãos americanos”. Depois que Obama assumiu a Casa Branca, a gigantesca máquina de espionagem americana só fez crescer. Com bons argumentos – alguns deles legais, garantidos pela Constituição dos EUA – Greenwald questiona os limites da espionagem dentro e fora do território americano.

A espionagem de tudo e todos é um fardo não só para os cofres públicos como para o próprio trabalho da área de inteligência, que tem de se desdobrar para processar uma quantidade de informações sem precedentes. Mesmo após a vigilância massiva ser adotada como prática de rotina, só para citar três casos, os EUA não foram capazes de impedir o ataque ao Hotel Marriot, acontecido em 2008, em Islamabad; as explosões na embaixada americana em Benghazi, em 2012 na Líbia; ou o atentado na maratona de Boston, em 2013 – todos atos de terrorismo que tiraram vidas de americanos.

O Guardian e o Washington Post foram premiados em abril com o Pulitzer, na categoria Serviço Público, por revelarem ao público a extensão da bisbilhotice oficial do governo americano. A contribuição do trabalho jornalístico de Greenwald no diário britânico é inegável e entrará para a história. Já o seu livro, não.

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