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História que arde

O incêndio que consumiu a Catedral de Notre-Dame não só expõe a fragilidade do patrimônio cultural – é um lembrete do que faz o Ocidente ser o Ocidente

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 19 abr 2019, 07h00 - Publicado em 19 abr 2019, 07h00
(VEJA/VEJA)

Ao verem a Catedral de Notre-Dame consu­mir-se em chamas, no espetacular crepúsculo primaveril da segun­da-feira 15 em Paris, perplexos cidadãos franceses, turistas e fiéis católicos puderam conectar­-se, por algumas horas, com aflições externadas lá se vão quase dois séculos pelo escritor Victor Hugo (1802-1885). No clássico O Corcunda de Notre-Dame, de 1831, Hugo lamenta que o “sublime” edifício padecesse “diante das degradações, das mutilações sem-número que, simultaneamente, o tempo e os homens fizeram”. E se indignava: “O tempo é cego, o homem é estúpido”. Hugo via a construção, então já ameaçada pela deterioração, como símbolo não só da história da França ou da cristandade, mas da própria civilização. Erigida entre os séculos XII e XIV, a igreja sobreviveu a toda sorte de agressão. Assim que as chamas da semana passada foram debeladas, ficou claro que, mais uma vez, ela resistirá às infâmias do tempo e dos homens. A catedral ardeu, porém suas fundações ficaram de pé para atravessar mais uma encruzilhada da história que afeta não apenas a França ou a Europa — mas todo o Ocidente, cujos princípios liberais e democráticos andam em crise.

“Tenham uma boa Semana Santa”, desejou no Twitter a Arquidiocese de Paris na véspera da tragédia. A catedral, administrada pelo clero local, é visitada por 12 milhões de pessoas por ano, o que faz dela a maior atração turística da cidade (a Torre Eiffel recebe metade desse contingente). Nesta Sexta-feira Santa, a igreja exibiria sua maior relíquia: a coroa de espinhos que teria sido imposta a Jesus na crucificação. O fogo impediu o plano. Detectado às 18h20, no horário de Paris, logo parecia engolfar tudo. No ápice, a torre conhecida como “A Flecha” veio abaixo. Mas a sorte — e a eficácia dos bombeiros, mais a coragem de um padre que enfrentou as chamas para salvar justamente a coroa de Cristo, entre outras relíquias — jogou a favor da catedral. Alguns itens se perderam (confira no quadro). De acordo com as primeiras avaliações, porém, sua estrutura foi preservada, bem como os estupendos vitrais e o órgão que tocou na coroação de Napoleão (em 1804) e na beatificação de Joana d’Arc (em 1909).

Acossado pelo movimento dos coletes-amarelos, o presidente francês Emmanuel Macron vive uma incógnita: pode ver sua moral melhorar ou desandar de vez conforme o modo como lidará com o estrago. De bate-pronto, ele preferiu fazer uma promessa demagógica: garantiu que a Notre-Dame estará recuperada, e ainda mais bela, em cinco anos, a tempo da Olimpíada de 2024 em Paris — embora especialistas duvidem que seja refeita em menos que quinze anos. A favor de Macron, dinheiro não vai faltar: em dois dias, milionários doaram o equivalente a 3,8 bilhões de reais para a restauração.

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A visão dos escombros, ainda enfumaçados, expôs a chocante fragilidade a que está sujeito até o patrimônio cultural mais festejado do país que zela com a maior obsessão por seus tesouros do passado — tão diferente do Brasil, que negligenciou o finado Museu Nacional. O plano para emergências da catedral era impecável, e foi o que a salvou. A principal hipótese investigada pela promotoria francesa é que o incêndio tenha sido fruto de um acidente — talvez ligado ao processo de restauração pelo qual o edifício vinha passando. Mas não era descabida a possibilidade de um atentado terrorista, como veio à mente de muitos ao ver a Notre-Dame ardendo. Nos últimos anos, fanáticos atacaram templos e antissemitas profanaram cemitérios na França. O Estado Islâmico, que neste ano explodiu bombas numa igreja católica das Filipinas, comemorou o incêndio na catedral como “um golpe nos corações cruzados”.

Extraordinário testemunho da arquitetura gótica, o templo começou a ser construído em 1163, quando a Europa estava mergulhada no fervor cristão da Idade Média. Estudos arqueológicos sugerem que a Notre-Dame tenha sofrido outros incêndios no início de sua história. Antes do desastre atual, contudo, seu período mais periclitante se deu na Revolução Francesa, em 1789. Agitadores depredaram imagens no interior da catedral, transformaram-na em acampamento e até derreteram seus sinos gigantescos para produzir armamentos. De tempos em tempos, ela teve a mão caridosa de figurões — caso de Napoleão Bonaparte, que a resgatou dos danos da revolução. Mas só ganhou prestígio e atenção de fato graças ao livro de Victor Hugo, que não apenas alertou para o descaso que ela sofria como a consagrou no imaginário universal com as desventuras do corcunda Quasímodo dentro de suas decrépitas dependências — popularizadas em filmes e num desenho da Disney. Obras de conterrâneos como Honoré de Balzac ajudaram a cristalizar sua fama. Paris, símbolo da glória ocidental, tem um pé na modernidade da Torre Eiffel e o outro nas raízes medievais representadas pela Notre-Dame. É bom nunca esquecer que, sem qualquer um desses pés, o Ocidente será um gigante condenado a tropeçar.

Publicado em VEJA de 24 de abril de 2019, edição nº 2631

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