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Hiroshima e Nagasaki 75 anos depois: ataques transformaram Japão e o mundo

Trágico capítulo da história da humanidade levou a mudanças na sociedade japonesa e deixou cicatrizes permanentes nos sobreviventes

Por Caio Saad, Julia Braun e Caio Mattos
Atualizado em 22 jul 2021, 10h37 - Publicado em 6 ago 2020, 08h47

É difícil esquecer o impacto avassalador de bombas com poder destrutivo de dezenas de milhares de toneladas de explosivos. Para os sobreviventes dos bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, as imagens de agosto de 1945 estarão para sempre guardadas como um momento de horror e medo.

Os japoneses relembram nesta quinta-feira, 6, 75 anos desde que os Estados Unidos lançaram o primeiro ataque com bomba atômica do mundo na cidade de Hiroshima, seguido pelo segundo e último, três dias depois, em Nagasaki, vaporizando vidas, prédios e a disposição do Japão para a guerra. Mais de 200.000 pessoas morreram.

Imagens de arquivo mostram a Hiroshima pré-bomba como uma cidade agitada e próspera, com homens embarcando em bondes, mulheres elegantemente vestidas com quimonos e crianças com uniformes escolares caminhando sob flores de cerejeira que pairavam nas ruas comerciais. Após a explosão, destroços e metais retorcidos se estendiam quase sem fim ao horizonte. Postes de eletricidade e árvores nuas acompanhavam um punhado de prédios sem janelas que pareciam ter resistido ao impossível.

Em anos anteriores, o país organizou memoriais anuais e renovou promessas por um mundo livre de armas nucleares na data. As cerimônias deste ano serão menores por causa da pandemia de Covid-19, com menos assentos e mensagens por vídeo de dignatários. Ainda assim, a data não será esquecida.

Cicatrizes aparentes

Localizada a 150 metros do epicentro da explosão atômica de 6 de agosto de 1945, a Cúpula Genbaku é um duro lembrete da devastação sofrida pelas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. O antigo prédio da prefeitura, uma das poucas construções próximas ao epicentro da bomba que restou em pé, hoje serve como uma espécie de metáfora para os sobreviventes.

A cidade se reergueu ao redor do prédio inaugurado em 1915 e hoje Memorial da Paz de Hiroshima, em homenagem às mais de 140.000 pessoas mortas no ataque dos Estados Unidos há 75 anos contra a cidade, mas com cicatrizes aparentes. Nos anos seguintes, mesmo no calor, era comum ver pessoas com chapéus e casacos para cobrir ferimentos e queimaduras.

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A tragédia também gerou um movimento contra a proliferação das armas nucleares. Como explica o químico Masakatsu Yamazaki, do Instituto de Tecnologia de Tóquio, foi apenas após o fim da ocupação Aliada que os japoneses se mobilizaram contra os armamentos nucleares. Durante a ocupação, encerrada em 1952, a máquina de censura limitava o conhecimento da população sobre a ameaça nuclear.

O primeiro episódio de protestos se deu após um teste nuclear americano no início de 1954 no Atol de Bikini, nas ilhas Marshall, a 4.000 quilômetros da costa japonesa. A tripulação de um navio japonês foi atingida pelas partículas radioativas, mas, mesmo assim, os Estados Unidos continuaram os testes, contaminando os peixes da região. Até meados de 1955, já havia uma petição com as assinaturas de mais de um terço de toda a população japonesa. No mesmo ano, o governo japonês aprovou uma lei que bania o uso militar da energia nuclear.

O medo de uma guerra nuclear, porém, já pairava sobre grande parte da população antes mesmo das bombas de Hiroshima e Nagasaki, e agosto de 1945 apenas tornou os temores reais. “O medo que já existia cresceu e se estendeu por todo o período da Guerra Fria”, diz James Hershberg, professor de História da Universidade George Washington.

“A opinião pública sobre a proliferação de armas nucleares é pendular. Há períodos em que há muita preocupação, mas depois o tema deixa de interessar”, diz Jeffrey Knopf, professor da Middlebury College, nos Estados Unidos. “Sempre que progredimos no controle, algumas pessoas parecem acreditar que o problema nuclear foi resolvido. Mas, enquanto existirem armas nucleares, o perigo ainda estará lá”.

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Um evento, várias visões

Além das mudanças comportamentais, a bomba também criou uma divisão profunda no imaginário popular e cultural entre americanos e japoneses. Enquanto as histórias modernas americanas mostram super-heróis nascidos da radiação, como o Hulk e os integrantes do Quarteto Fantástico, a mídia japonesa criou monstros, como o gigante e quase indestrutível Godzilla. 

O uso da primeira arma nuclear por qualquer país também divide americanos e japoneses. Em uma pesquisa de opinião conduzida pela Gallup em 1945, logo após os bombardeios, 85% dos americanos aprovaram o uso da nova arma atômica contra as cidades japonesas. A versão mais recente da pesquisa, conduzida em 2015 pelo Pew Research Center, indicou que o número agora é de 56%. O número no entanto, é discrepante entre americanos com mais de 75 anos: sete em cada dez dizem que os ataques foram justificáveis. 

Os bombardeios precedem o fim da Segunda Guerra Mundial. A rendição da Alemanha, em 8 de maio, marcou o fim do confronto na Europa, mas combates seguiram na Ásia e no Pacífico. Em julho, ao final da conferência de Potsdam, os Aliados, liderados por EUA, Reino Unido, França e União Soviética, exigem a rendição do Japão, que ignora o ultimato. 

Em 15 de agosto, seis dias depois do ataque a Nagasaki, o Japão se rende. No entanto, começa uma busca de países por arsenais nucleares. Em 1949 a União Soviética se tornou o segundo Estado com armas atômicas, após detonar sua primeira bomba nuclear no Cazaquistão. 

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“Todos os presidentes americanos, sem exceção, defenderam a ideia de que o ataque foi justificado e necessário. Muitos cidadãos também acreditam nisso”, diz James Hershberg. “Enquanto isso, o Japão aceitou seu papel de vítima para esconder alguns dos crimes cometidos durante a guerra”

São duas versões muito debatidas. Até hoje historiadores discutem se os ataques, no fim das contas, salvaram vidas ao cessarem o conflito, evitando assim uma possível invasão terrestre. Segundo Hershberg, o consenso internacional é de que os ataques foram motivados por interesses políticos e militares dos americanos, que tinham como grande objetivo derrotar o Japão, ao mesmo tempo em que também desejavam colocar um fim à guerra. Para Washington, a possibilidade de mostrar seu poderio bélico e intimidar a União Soviética também foi um fator determinante. 

“As bombas revolucionaram a forma de pensar a guerra, o combate militar e a ciência”, diz o professor da Universidade George Washington. “Inaugurou-se uma nova era das relações intergovernamentais e diplomáticas”.

“Os líderes mundiais entenderam que eles precisam ser cautelosos para não provocar o tipo de conflito bélico que poderia levar à escalada do uso nuclear”, diz Jeffrey Knopf. “Há muitas razões complexas pelas quais não realizamos outra guerra mundial desde 1945, mas o medo da guerra nuclear é uma delas”.

‘Inferno na Terra’

Para os sobreviventes, no entanto, esses cálculos não significam nada. Muitos lutaram por décadas contra traumas físicos e psicológicos, fora o estigma às vezes atrelado a ser um “hibakusha”. Frequentemente eles eram marginalizados, em especial para casamentos, por conta de preconceito envolvendo exposição à radiação.

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Hoje, os relatos dos “hibakusha”, palavra em japonês para as pessoas afetadas pela bomba, vão pouco a pouco diminuindo. A média de idade de um sobrevivente agora é pouco mais de 83 anos, segundo o Ministério da Saúde do Japão, e a última geração deles tenta garantir que a história não se repita. A cidade se tornou um ponto de referência em estudos e pesquisas para desnuclearização. O Museu do Memorial da Paz de Hiroshima conta com um arquivo em vídeo das histórias de mais de 1.500 sobreviventes; alguns deles estão até mesmo disponíveis para conferências online. 

Terumi Tanaka, de 88 anos, é um dos “hibakusha”. Morador de Nagasaki, bombardeada três dias depois depois de Hiroshima, Tanaka teve um destino diferente de seu avô, uma das 27.000 pessoas que morreram instantaneamente. Outras 70.000 morreram até o final do mesmo ano por doenças e ferimentos relacionados à bomba.

Os ataques soltaram uma radiação que se mostrou mortal tanto logo após o bombardeio quanto a longo prazo. Doenças e sintomas associados à radiação foram relatados por muitos que sobreviveram ao impacto inicial. Os sintomas da síndrome aguda de radiação incluem vômitos, dores de cabeça, náuseas, diarréia, hemorragia e perda de cabelo. Para grande parte dos afetados, a doença é fatal dentro de algumas semanas ou meses.

Os sobreviventes dos ataques também sofreram com efeitos no longo prazo, incluindo riscos elevados de câncer de tireoide e leucemia. Ambas as cidades atacadas registraram taxas mais altas de incidência de câncer após o ocorrido. Segundo estudo da Fundação de Pesquisa de Efeitos de Radiação do Japão-EUA, que analisou 50 mil vítimas de Hiroshima e Nagasaki, aproximadamente 100 morreram de leucemia e 850 sofreram de câncer induzido por radiação.

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Há 50 anos, Tanaka defende o desarmamento nuclear e, há mais de 20, é líder de um grupo de vítimas. Estima-se que restem apenas 136.700 delas, muitos ainda eram bebês ou estavam na barriga de suas mães no momento das atrocidades.

“Após todos os sobreviventes da bomba atômica irem embora, tenho medo de se as pessoas realmente irão conseguir entender o que passamos”, diz. “Montamos um grupo chamado No More Hibakusha Project, que trabalha para preservar registros como arquivos, incluindo o que escrevemos para que (a próxima geração) possa usá-los em suas campanhas”.

Em um relato em primeira pessoa publicado em VEJA em 2016, a sobrevivente Chifusa Wakigawa, que trabalhava em uma fábrica, afirma que, sempre que o dia 9 de agosto se aproxima, “a traumatizante lembrança daquela manhã chega a me deixar de cama”.

“Tudo ocorreu tão rápido que pensei, por instantes, ter morrido. Quando o barulho parou, apalpei meu corpo: não tinha ferimentos. Não conseguia ver nada; acreditava estar cega. Contudo, aos poucos, a visão voltou e pude observar o que se passara. À minha volta, só havia escombros e muitos, muitos mortos. Saí correndo para casa”, conta. 

No caminho, segundo ela, havia cadáveres carbonizados, vítimas ensanguentadas que pediam socorro e pessoas queimadas que tentavam saciar a sede em um rio. “Nunca se apagou da minha memória a cena de uma mãe segurando firme um bebê já sem cabeça. Ela implorava por água como se ainda não tivesse caído em si. Eu vi – não há outro modo de descrever – o Inferno na Terra”. 

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