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Europeus tentam acertar as contas com passado comunista

Países do antigo bloco socialista começam a lidar com assuntos mal resolvidos de sua história recente: a opressão, a espionagem e os massacres patrocinados por ditadores comunistas

Por The New York Times
10 mar 2012, 15h18

Apesar de tudo o que conquistou desde a queda da Cortina de Ferro, há tempos que a Polônia tem evitado um acerto de contas com o seu passado comunista – a opressão, a espionagem e até mesmo os massacres. A sociedade preferiu esquecer, ou seguir em frente.

Portanto, pode parecer surpresa que a Polônia e muitos de seus países vizinhos da Europa Central e Oriental tenham decidido que chegou a hora de lidar com assuntos mal resolvidos. De repente, criou-se uma onda de investigações na forma de ações governamentais e explorações culturais, algumas buscando um desfecho, outras reivindicando indenizações.

Um tribunal na Polônia decretou, em janeiro, que os líderes comunistas por trás da imposição da lei marcial em dezembro de 1981 integravam um “grupo criminoso”. O presidente da Bulgária está tentando demitir embaixadores que trabalharam como agentes de segurança. O governo da Macedônia está ocupado com a caça a colaboradores, e a nova constituição da Hungria permite que sejam abertos processos jurídicos contra antigos comunistas.

No dia 19 de fevereiro, na Alemanha, a chanceler Angela Merkel nomeou como próximo presidente um antigo pastor e ativista da Alemanha Oriental, Joachim Gauck, que transformou os documentos do Ministério Estadual de Segurança – mais conhecido como Stasi – em um arquivo permanente.

“Para conseguirmos nos defender melhor dos regimes totalitários no futuro, precisamos compreender como eles funcionaram no passado, como uma vacina”, disse Lukasz Kaminski, presidente do Instituto Nacional de Memória da Polônia.

Por toda a Europa Central e Oriental, parece que acabou o consenso do silêncio, que nunca calou todas as críticas e discussões, mas efetivamente abafou as vozes que clamavam por uma justiça há muito aguardada.

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A reconciliação com o passado é um assunto que paira sobre a Europa pós-comunista há décadas. Mas agora, essa experiência tem uma ressonância global mais ampla, servindo como ponto de discussão por todo o mundo árabe, onde as revoltas têm derrubado ditadores de longa data, levantando questões igualmente desconfortáveis a respeito da cumplicidade dos indivíduos em regimes autocráticos.

A nações árabes são obrigadas a lidar com as mesmas questões ligadas à culpa e à responsabilidade que a Polônia e o resto da Europa Oriental começam novamente a enfrentar. Com o tempo, o passado se torna mais fácil de encarar, menos ameaçador, mas de resolução não menos urgente. A experiência aqui, no entanto, sugere que poderá demorar anos, talvez até décadas, até que o mundo árabe finalmente volte o olhar para si mesmo.

Sucesso de bilheteria – O repentino olhar para o passado na Europa não se encontra apenas nos âmbitos da política e da justiça. Houve julgamentos e vereditos, mas também dramas e documentários, thrillers e histórias, todos buscando um desfecho para um passado que se recusa a ser esquecido.

Na Polônia, quase 1 milhão de espectadores já encheram cinemas para assistir a Czarny Czwartek (Quinta-feira Negra), de Antoni Krauze, filme sobre um acontecimento de 1970 em que as tropas do governo atiraram em dezenas de manifestantes em Gdynia e outras cidades da costa báltica da Polônia.

O filme levou quarenta anos para ficar pronto. No começo, o diretor temeu a censura comunista, e depois, foi desencorajado pela apatia da população. Mas, no ano passado, o filme se tornou um sucesso, precisamente por causa do seu tema incômodo: manifestantes não armados e observadores inocentes foram alvejados ou espancados com requintes de sadismo em delegacias de polícia.

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“No começo dos anos 1990, as pessoas achavam que não era certo voltar a falar desses assuntos”, disse Krauze, de 72 anos, enquanto tomava um café em um movimentado shopping center de Varsóvia.

A Polônia está enfrentando o seu passado em diversos aspectos. Depois de anos de ações judiciais, a corte que julgava os líderes comunistas de 1981, quando a lei marcial foi imposta, acabou passando apenas uma suspensão de execução de pena de dois anos para o ministro do interior da época, Czeslaw Kiszczak. O general Wojciech Jaruzelski, antigo líder comunista da Polônia que declarou a lei marcial, foi liberado do julgamento por razões médicas.

Na Bulgária, o presidente recém-eleito prometeu demitir embaixadores e diplomatas que trabalharam no aparato de segurança de estado comunista, mesmo admitindo recentemente que 11 dos 15 bispos com cargos mais altos do país são antigos agentes; o plano do presidente tem sido alvo de oposição nos tribunais.

Na Macedônia, parte da antiga Iugoslávia, a corte constitucional interrompeu temporariamente em janeiro os planos do governo para expandir a busca por antigos agentes e colaboradores.

Recentemente, na Letônia, eleitores rejeitaram a proposta de tornar o russo a segunda língua oficial do país, uma demonstração das dificuldades que o país encontra em aceitar a sua herança soviética.

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Durante protestos recentes na Romênia, cartazes e palavras de ordem de manifestantes em Bucareste comparavam o presidente Traian Basescu, cada vez menos popular e, segundo críticos, cada vez mais autoritário, ao antigo ditador Nicolae Ceausescu.

E até mesmo na Albânia, um dos países mais pobres da Europa, o museu nacional abriu, no dia 20 de fevereiro, um novo pavilhão focado nos abusos do comunismo durante o regime do ditador Enver Hoxha.

Resistência – O ressurgimento dessas questões uma geração depois também tem gerado um pouco de controvérsia, muitas vezes vinda de governos linha-dura e incluindo acusações de acerto de contas ou de oportunismo político.

Na Alemanha, agentes da inteligência nacional têm observado dezenas de membros do Parlamento do Partido da Esquerda, que inclui elementos do antigo Partido Socialista Unificado, que governava a Alemanha Oriental. “O fato de eles continuarem a fazer isso a sério em 2012 realmente me deixou atônito”, disse Gregor Gysi, líder do grupo parlamentar do Partido da Esquerda e um dos políticos que estão sendo observados. “Eles continuam pensando em termos das categorias da Guerra Fria.”

Quando a nova constituição da Hungria entrou em vigor, no dia 1 de janeiro, rejeitou expressamente a validade da Constituição Comunista, e abriu portas para futuras ações judiciais. “Negamos qualquer lei de prescrição dos crimes desumanos cometidos contra a nação húngara e seus cidadãos pelas ditaduras nacional socialista e comunista”, diz a constituição.

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De acordo com Istvan Rev, diretor dos Arquivos Abertos da Sociedade, em Budapeste, o sucessor do Partido Comunista retornou rápido demais ao poder em 1994. “Eles voltaram ao poder rápido demais, apenas quatro anos depois das mudanças, e não sentiram a necessidade de confrontar o passado de uma maneira muito séria”, disse Rev.

Na maioria dos casos, essas revoluções não se constituíram em tomadas completas de poder, mas transições moderadas. As autoridades comunistas abriram mão do poder, mas sob algumas condições.

Na Polônia, a volta dos pós-comunistas se deu ainda mais rápido do que na Hungria, com a Aliança Democrática da Esquerda vencendo em 1993, e reforçando a divisão na sociedade polonesa entre aqueles que estavam dispostos a seguir em frente e aqueles que não conseguiam.

“Eu esperava algum tipo de Tribunal de Nuremberg para o comunismo”, disse Tadeusz Pluzanski, cujo pai foi torturado pela polícia secreta comunista. “Não houve revolução alguma”, ele disse, “apenas esse processo de transformação.”

Pluzanski publicou um livro em outubro sobre as experiências de seu pai e de outros, com título provocativo de “Bestie” (Bestas) e com a capa marcada por borrões vermelhos, como se fossem manchas de sangue. Para sua surpresa, as duas primeiras edições, com 6.000 exemplares, se esgotaram rapidamente e uma terceira edição está a caminho das livrarias.

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“A ditadura deixa uma herança sombria para trás, e quando ela acaba, ninguém quer lidar com isso”, disse Antoni Dudek, membro da diretoria do Instituto Nacional de Memória, na Polônia. “Geralmente, isso só ocorre com a nova geração, que está disposta a fazer perguntas inconvenientes.”

Best-seller – Zygmunt Miloszewski, de 35 anos, incluiu uma trama secundária sobre os elementos restantes da polícia secreta em seu romance policial de 2007, Uwiklanie (Emaranhamento). O livro se tornou um best-seller e foi adaptado para o cinema no ano passado. “Tenho a sensação de que, já que essa época não foi nem um pouco explicada, as fundações do meu país estão fraturadas”, disse Miloszewski em uma entrevista, com a fisionomia jovem acentuada por uma barba desalinhada e um cabelo desgrenhado.

Tanto no livro quanto no filme, pesquisadores ficcionais do Instituto Nacional da Memória têm um papel importante em desvendar o mistério. A lei que criou o instituto é de 1998 e os trabalhos começaram em 2000. Hoje, o instituto mantém o equivalente a cerca de 19 quilômetros de documentos em 11 centrais e sete escritórios menores por toda a Polônia, com um orçamento anual de cerca de US$ 65 milhões.

O instituto sediou conferências e simpósios e trabalhou com professores em planos de aulas, além de publicar mais de 800 títulos sobre a ocupação nazista e o período comunista. O instituto também ajudou a apoiar o filme de Krauze, Czarny Czwartek.

Quando Krauze começou as filmagens em Gdynia, em 2010, ele logo notou que o seu projeto contava com enorme apoio da população local, que organizou espontaneamente voluntários para limpar a neve, e mobilizou agentes do governo para liberar o caminho com autorizações e empresários para abrir mão dos aluguéis de locação. “Dava para ver claramente que o povo queria que essa história fosse contada”, disse Krauze.

Quando chegou a hora de lançar o filme, em fevereiro passado, ele disse que ainda não estava certo do que esperar, com a presença não só do primeiro-ministro polonês e do presidente do Parlamento, mas também da viúva de uma das vítimas que tem um papel muito importante na trama do filme. Quando subiram os créditos, Krauze foi aplaudido de pé.

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