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Entre raios e trovões

Theresa May enfrentou fogo e fúria, balançou e quase caiu, mas acabou mantendo o cargo. Sua proposta de Brexit, porém, continua por um fio

Por Maria Clara Vieira
Atualizado em 30 jul 2020, 20h00 - Publicado em 14 dez 2018, 07h00

Há que admirar Theresa May. Equilibrando-se nos seus sapatinhos coloridos pela borda afiada do Brexit — uma espada sobre o governo do Reino Unido — por longos e tumultuados dois anos e meio, a primeira-ministra tomba para lá, tomba para cá, tropeça em obstáculos, aguenta rajadas de fogo e fúria e não cai. Na quarta 12, Theresa May sobreviveu ao golpe mais duro armado dentro de seu partido: a convocação de uma eleição interna entre os 315 parlamentares conservadores para decidir se ela ficava ou saía. Se 157 avalizassem a moção de desconfiança, ela iria para casa. “Vou dar tudo de mim para contestar essa moção”, desafiou. Contados os votos, só 117 o fizeram, e ela ficou. Balançando, como sempre, mas ficou. A iniciativa só poderá ser repetida daqui a um ano.

A manobra contra a primeira-ministra foi possível porque, um dia antes, passara do mínimo de 48 o número de parlamentares que haviam enviado carta ao Comitê 1922, o gabinete da bancada conservadora, propondo o afastamento dela. Isso não podia ter chegado em pior momento, tanto que a própria May pediu pressa no processo. A primeira-ministra foi obrigada a retirar do plenário na terça 11 — uma humilhação em termos políticos — a votação, marcada com duas semanas de antecedência, do combalido acordo de divórcio que firmou com a União Europeia, simplesmente porque ele não tinha chance nenhuma de ser aprovado. Os votos aquém dos necessários contra ela no Comitê 1922 podem ter dado novo alento ao seu governo. Mas 117 votos contrários confirmam, sem sombra de dúvida, que sua proposta para o Brexit não chega nem perto dos votos necessários na Câmara dos Comuns.

Para melhorar suas chances de sobreviver à moção de desconfiança, May prometeu que deixará o cargo assim que o Brexit se concretizar. O prazo é, no mínimo, elástico. Funcionária pública de carreira sem ideologia marcante nem grandes ambições de poder, a primeira-ministra dedica­-se a tornar o Brexit possível desde que a saída do Reino Unido da UE foi aprovada, em plebiscito apertado, em junho de 2016. O então primeiro-­ministro, o conservador David Cameron, um anti-Brexit de pouca visão, renunciou, os figurões candidatos à vaga se engalfinharam e o posto meio que sobrou para ela. De lá para cá, May respira Brexit 24 horas por dia — ela e as torcidas do Manchester United e do Liverpool combinadas. O assunto mobiliza os políticos, a imprensa, os programas de TV, as conversas nos pubs, até os reality shows.

No início de novembro, Theresa May anunciou com fanfarra ter chegado a seu controvertido acordo — 585 páginas em letras pequenas — com a UE para um divórcio civilizado. Dias depois, numa reunião de cúpula, os líderes europeus assinaram embaixo da proposta. Em casa, porém, a recepção foi gelada. Com os conservadores divididos entre os que apoiam o governo (deveriam ser todos, mas é a minoria), os que são contra o Brexit e um estridente núcleo duro que exige uma separação cirúrgica, sem nenhuma pendência que prolongue o rompimento (além, claro, da oposição trabalhista que quer ver o circo pegar fogo), o acordo de May foi bombardeado a torto e a direito.

Reforçada pela votação a seu favor, May volta à vaca-fria: tentar arrancar da União Europeia mudanças no texto que possam agradar a seus adversários. “Não há nenhum espaço para renegociação”, já declarou o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker. Mas acenou com uma saída honrosa ao fim do périplo de May (“uma penitente em romaria”, descreveu um colunista do The New York Times) para obter concessões: “Um olhar inteligente pode achar maneiras de esclarecer e interpretar pontos sem precisar reabrir o texto final”. A principal pendenga é como manter livre e desimpedido o trânsito de pessoas e mercadorias entre a Irlanda, país independente, e a Irlanda do Norte, porção da ilha que faz parte do Reino Unido — ponto de honra do delicado compromisso que pôs fim a décadas de conflitos. Nos termos do acordo de May, tudo fica mais ou menos como está — o que prende o país a certas normas da UE — durante a transição, que vai até 2021. Se não se achar uma solução até lá, será a Europa, unilateralmente, que decidirá se livra ou não os britânicos das amarras. O núcleo duro, previsivelmente, prefere a morte.

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Ainda que Theresa May obtenha uma ou outra mudança, dificilmente conseguirá fazer de seu acordo um texto palatável até 21 de janeiro, prazo máximo que ela mesma estabeleceu para a votação no Parlamento. Se ele for rejeitado, o país entrará em ebulição até 29 de março, data marcada para o divórcio. A oposição pode convocar um voto de confiança e derrubar May. Ela pode renunciar e outro conservador assumir. Alguém pode convocar um novo plebiscito e deletar sumariamente o Brexit (ou recomeçar tudo). O 29 de março pode chegar e a separação acontecer sem acordo, deflagrando o caos no comércio, nas finanças e na circulação de pessoas.

“O melhor seria se todos se acalmassem neste período de festas de fim de ano, pensassem melhor sobre o desastre de não haver acordo e os mais moderados dessem sinais de que podem vir a apoiá-lo. Mas a polarização ficou tão intensa que acho difícil isso acontecer”, diz John Springford, do instituto de pesquisa londrino Center for European Reform. Os britânicos, que têm fama de calmos e cerebrais, ainda vão dormir e acordar com o assunto Brexit a lhes perturbar a fleuma por um bom tempo.

 


O recado dos “coletes” foi ouvido

Já não pairam dúvidas sobre o tamanho do estrago provocado pelo movimento dos “coletes amarelos”, que sacudiu a França por quatro sábados sucessivos, impulsionado pela raiva e pelo descontentamento de uma parcela meio esquecida da população. Em um pronunciamento de treze minutos em rede nacional de televisão, o presidente Emmanuel Macron redirecionou sua política econômica e social ao listar uma série de medidas para acalmar os ânimos — sem negociações prévias ou sequer uma lista de reivindicações na mesa. Pondo a culpa na “doença” que vem deteriorando as condições de vida nos últimos quarenta anos, Macron admitiu que “nós (governo e instituições) covardemente nos acostumamos com isso”. Concluiu, solene: “Assumo minha parcela de responsabilidade”.

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Concessões - “Coletes amarelos” assistem a Macron: nova convocação
Concessões - “Coletes amarelos” assistem a Macron: nova convocação (Jean-François Monier/AFP)

O governo, que já havia adiado o aumento de combustível que detonou o movimento, agora promete elevar o salário mínimo em 100 euros em 2019, cancelar uma projetada alta do imposto sobre aposentadorias, remover as taxas sobre horas extras e estimular a concessão de bônus pelos empregadores. O conjunto de medidas custará entre 8 e 10 bilhões de euros, bancados com dinheiro do contribuinte. Nas redes sociais, vozes radicais da rebelião sem liderança única acharam pouco e convocaram o “Ato V” — uma quinta marcha, no sábado 15.

A administração Macron tomou outro golpe na noite da terça 11, quando o francês Chérif Chekatt, de 29 anos, abriu fogo contra a multidão que circulava pelo Mercado de Natal de Estrasburgo, festival que acontece desde 1570. Houve três mortos e doze feridos. Atingido no braço, Chekatt conseguiu fugir. Com 27 condenações na França, na Alemanha e na Suíça e várias passagens pela prisão, o jovem estava na mira de todos os radares antiterrorismo. Entre os “coletes amarelos”, foi compartilhada a tese conspiratória de que Macron armou tudo para enfraquecer o movimento.

Publicado em VEJA de 19 de dezembro de 2018, edição nº 2613

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