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A vida na Venezuela, com 94,5% da população abaixo da linha da pobreza

Vizinha sempre presente no polarizado debate político brasileiro se afunda na pior crise já vista no continente

Por Monica Weinberg, de Caracas, e Julia Braun
Atualizado em 4 jun 2024, 13h28 - Publicado em 29 out 2021, 06h00

Um vistoso cartaz com um largo sorriso de Hugo Chávez, presidente que comandou a Venezuela entre 1999 e 2013, dá as boas-vindas aos pacientes da ala infantil de um dos mais prestigiados hospitais da capital, Caracas, o El Algodonal, referência em doenças respiratórias. Às 7 da manhã de uma quarta-feira, a Guarda Nacional Bolivariana, que armada vigia as portas, estava em troca de turno — e aí abriu-se a fresta para um passeio pelo interior. É um cenário de horrores. Faltam luvas, máscaras, antibióticos, oxigênio e até mesmo água, que os familiares trazem em garrafas de refrigerante abandonadas nos banheiros imundos. Goteiras pingam na cozinha sobre a minguada comida dos doentes, muitos com diagnóstico de má nutrição. Não raro, também a luz se apaga, conferindo contornos surrealistas ao drama humano que transcorre naqueles corredores. Outro dia, a cirurgiã chefe Marieta del Raya operava um homem quando se deu um apagão. Manteve as mãos firmes e terminou o delicado trabalho de costura do abdômen com a lanterna do celular. “Esse país está na UTI”, resume a doutora.

arte Venezuela

O retrato do outrora centro de excelência médica, para onde afluía gente de toda a América Latina, é um triste espelho da Venezuela de hoje — o vizinho que a todo instante desponta no polarizado debate político brasileiro como um alvo de intensos ataques ou elogios, a depender do matiz ideológico de quem tem o microfone. Ali, água abundante na torneira, luz acesa, gás para cozinhar, todas essas conquistas civilizatórias básicas se tornaram artigos de luxo no castigado cotidiano da imensa maioria da população desassistida em suas necessidades mais elementares.

Segundo novos dados da Pesquisa Nacional de Condições de Vida, colhidos a cada ano pelas três grandes universidades do país, à frente do zelo pelas estatísticas que o governo não fornece, inacreditáveis 94,5% das pessoas estão afundadas na pobreza, vivendo com menos de 3,2 dólares por dia. Uma porção de três quartos desse contingente habita uma zona ainda mais dramática — a da miséria. Em nenhum lugar do planeta a fatia dos pobres é tão vasta, nem mesmo em nações africanas onde a escassez historicamente maltrata os indiví­duos, como Madagascar e o Sudão do Sul (veja o ranking). “É a pior crise econômica e humanitária já registrada na América Latina, e não foram poucas”, diz Paulo Velasco, especialista na região e autor de Venezuela e o Chavismo em Perspectiva.

“QUERO SER ALGUÉM” - Cheia de frases adultas, Giurbeneles Echenique, 15 anos, foi parar no hospital El Algodonal (à esq.), um retrato da crise profunda, com apenas 27,9 quilos. “Vou crescer, você vai ver”, desafia -
“QUERO SER ALGUÉM” – Cheia de frases adultas, Giurbeneles Echenique, 15 anos, foi parar no hospital El Algodonal (à esq.), um retrato da crise profunda, com apenas 27,9 quilos. “Vou crescer, você vai ver”, desafia – (Fotos Manu Quintero/.)

A face mais perversa da espiral da pobreza é a fome, que draga as forças e concentra as energias nas asperezas da sobrevivência. Um levantamento do Programa Mundial de Alimentos da ONU mostra que um em cada três venezuelanos não atinge as exigências nutricionais mínimas. É rotina que se desenrola em lares como os do povoado de Tocoron, a duas horas de Caracas. Em casebres que abrigam geladeiras vazias e eletrodomésticos enferrujados, comprados no tempo de menos aperto, cinco primos entre 5 e 11 anos estão abaixo do peso e pequeninos, aparentando bem menos idade. Comem, como se diz nas casas venezuelanas, lo que hay — se não há nada, ficam à míngua. Logo se avista Luiz Cadiz, ouvido pela reportagem de VEJA há três anos e agora, de novo, aos 18. Antes, o menino sonhava voltar a “comer carne”. “Hoje quero comer qualquer coisa”, afirmou em cortante depoimento em que dá rosto a uma perturbadora realidade apontada pela mesma pesquisa, que cavucou as dimensões da pobreza: em 2020, ela saltou 91%. A pandemia e seu deletério efeito sobre o mercado de trabalho contribuíram para tamanha expansão, mas o vírus é apenas um de vários fatores que arrastam o país às profundezas da crise.

DEU NISSO - Favela em Caracas: a inoperância do Estado prolifera a escassez -
DEU NISSO – Favela em Caracas: a inoperância do Estado prolifera a escassez – (Manu Quintero/.)

O enredo que levou a Venezuela, a ex “Arábia Saudita da América Latina”, ao topo do mais incômodo dos rankings envolve uma combinação explosiva de autoritarismo, irresponsabilidade fiscal, corrupção, ambiente de incertezas institucionais, opções econômicas equivocadas e o desmantelamento da indústria do petróleo, que já pôs o país no rol dos maiores exportadores do mundo e de onde jorrava dólares. Não mais: a PDVSA, a petrolífera estatal que produzia nos anos 2000 mais de 3 milhões de barris por dia, hoje está estacionada em 500 000 — resultado de um sucateamento que alcançou um ponto em que funcionários vendem ferro e outros metais extraídos das máquinas inoperantes e importa-se gasolina do Irã. A alarmante decadência não tem a ver com a diminuição de tão valioso recurso natural, mas com o modo como Chávez e principalmente seu sucessor, o atual presidente Nicolás Maduro, no poder desde a morte do chefe, em 2013, trataram o pilar da economia venezuelana, sacando de lá verbas a rodo para sustentar uma política assistencialista e trocando quadros técnicos por apadrinhados de alta patente militar.

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Mesmo com tantas distorções, a vida seguiu melhorando embalada pelo elevado preço do petróleo, que viria a despencar em 2014 — o ano inaugural da deterioração fulminante da Venezuela. Desde lá, o PIB recuou na casa dos 70%, algo como uma pessoa de 100 quilos passar a pesar 30. Ministro de Indústria e Comércio nos tempos de Chávez, o economista Victor Alvarez define o período dos petrodólares como o de “prosperidade ilusória”. “Não aproveitamos a chance para desenvolver nenhuma indústria, nada”, enfatiza ele, que considera Maduro o pior de todos os governantes venezuelanos e guarda “frustrações” em relação à era Chávez. A incompetência tingida de petróleo deságua nas ruas, onde as pessoas fazem filas de quilômetros para encher o tanque, já que o estoque de gasolina encolheu e o governo não subsidia mais combustível em todos os postos. Nos demais, o tanque cheio custa ao redor de 30 dólares, doze vezes o salário mínimo.

Em Caracas, diariamente se esbarra com centenas de carros amontoados engolindo as pistas e com muita gente que aprendeu a se resignar em esperar sua vez. O advogado Carlos Requena, 41 anos, era o número 8 de 150 veículos, a maioria avariada, com uma, duas décadas de estrada. Às 4 da tarde, veio a notícia de que o posto fechou e ele se preparava para varar a noite. Torcia para que, às 5 da manhã, as bombas estivessem a toda. “Se tudo der certo, devo ficar 28 horas por aqui”, calcula. Já foi pior. “No auge da pandemia, passávamos dias com o carro parado, nos revezando em turnos para dar uma passada em casa, tomar um banho e comer”, conta o advogado, que fez vários amigos nesse contexto que não tem igual em nenhuma outra parte.

GELADEIRA MINGUADA - Sem emprego, Estefany Guerrero, 23 anos, vive com os três filhos (na foto, Joel de 2 anos, o mais novo) e com a mãe, que arranja uns poucos trocados costurando para fora. “Nossa batalha diária é para não passar fome”, diz -
GELADEIRA MINGUADA – Sem emprego, Estefany Guerrero, 23 anos, vive com os três filhos (na foto, Joel de 2 anos, o mais novo) e com a mãe, que arranja uns poucos trocados costurando para fora. “Nossa batalha diária é para não passar fome”, diz – (Manu Quintero/.)

Faz-se fila — as famosas colas — para quase todas as operações do dia ­a dia na Venezuela, mas uma desapareceu: a dos supermercados, que penavam com as prateleiras às moscas. Antipropaganda para o governo, Maduro tratou de eliminá-las abrindo as portas para a importação. O problema então mudou de nome: não há mais desabastecimento, porém a população, empobrecida, está com os bolsos vazios para comprar. Vivendo da atividade de mototaxista, Enderson Briseño, 30 anos, é exemplo do tombo que tantos tomaram na escala social, um movimento que arrastou para a pobreza 9 de cada 10 famílias que compunham a classe média uma década atrás. Ele integrava uma pequena cooperativa, até que a crise atropelou a todos e os associados foram se desfazendo de suas motos. “Consegui manter a minha e me viro, mas tem dias que não ganho o suficiente para pôr comida na mesa”, lamenta o pai de quatro filhos, que perdeu 25 quilos desde 2018. A média nacional de emagrecimento é de menos 11 quilos em um ano. “Se a comida é pouca, deixamos para as crianças”, completa sua mulher, Aimara.

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SURREALISMO - Fila de dias para a gasolina e voucher dado no lugar do troco (acima): cenas de um cotidiano de obstáculos que testam a paciência -
SURREALISMO - Fila de dias para a gasolina e voucher dado no lugar do troco (acima): cenas de um cotidiano de obstáculos que testam a paciência – (Manu Quintero/.)

Imprensado pelas cifras de uma hiperinflação que já dura cinco anos (deve bater os 2 700% em 2021), com o Estado sem dinheiro em caixa e sob as sanções dos Estados Unidos, Maduro vem implantando medidas que, à primeira vista, soam como afronta à cartilha bolivariana, mas não resistem a um segundo olhar. “É questão de sobrevivência”, diz o economista Asdrúbal Oliveros, da consultoria Ecoanalítica. “O objetivo é assegurar a manutenção do poder.” Uma das manobras é ceder algum espaço à iniciativa privada, que vem se embrenhando onde o governo não tem mais fôlego para estar, como a produção de comida e o setor de hotéis. Outra mudança em curso, de fazer corar o próprio Maduro, que a demonizava, é a informal dolarização da economia, ato desesperado para tentar frear a inflação, dando um parâmetro aos preços que o bolívar há muito deixou de proporcionar — com 32 milhões de bolívares se comprava uma arepa, tortilha à base de farinha de milho que é paixão nacional. Cortaram catorze zeros da moeda, mas imprimir a cédula custava mais caro do que o valor estampado nela, então as transações migraram quase todas para o digital.

O cotidiano econômico é caótico. Em cada singela operação financeira, todo venezuelano é forçado a navegar em um mar que mescla bolívares, dólares, cartões de débito e vouchers. Isso mesmo: quando não há troco em dólar, os estabelecimentos dão um vale. Às vezes, paga-se um único refrigerante com as duas moedas. De uma forma ou de outra, tudo encareceu quando o dólar ingressou no cenário, fenômeno típico de lugares tão assolados pela inflação que não guardam a “memória do preço”, como dizem os economistas. “Os pobres ficaram mais pobres e o fosso social aumentou”, frisa Maria Jose Gonzalez, diretora-executiva da ONG Cáritas em Los Teques, a 30 quilômetros de Caracas, de onde se pega uma via pontilhada por fábricas desativadas. Ela fala com conhecimento de causa: lida com a desnutrição crônica de crianças e com famílias cuja vulnerabilidade choca pela ausência do mínimo. Percebe-se, porém, notável resistência em jovens como Giurbeneles Echenique, 15 anos, que luta contra uma doença que lhe ataca o pulmão e contra a ideia de que não há bom futuro para ela. “Vou estudar e crescer, você vai ver”, desafia a menina, que pesa 28 quilos quando deveria ter uns 45.

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A ruína venezuelana envolve afronta permanente à democracia por um governo que corrói as instituições e domina os três poderes, cala a oposição prendendo seus líderes, cultiva polícias e milícias que agem com brutalidade e falseia o jogo eleitoral. “É um teatro que confere roupagem democrática a um regime tirano”, define o doutor em ciências políticas e ex-­deputado Gregório Contreras, da oposição. Em 21 de novembro, haverá eleições para prefeito e governador. Desta vez uma ala dos anti-Maduro vai participar, mesmo sem chances, incluindo o partido de Juan Guaidó, que em 2019 assumiu o posto de presidente interino com a intenção de derrubar Maduro, foi reconhecido por sessenta países, mas desidratou ao fracassar em seu objetivo de assumir o poder. Maduro, por sua vez, segue aferrado ao cargo com o apoio geopolítico da Rússia e da China (referida no noticiário local como “o gigante asiático”) e mantendo relação umbilical com os militares, enfronhados em todas as instâncias.

AULA DE ADAPTAÇÃO - Na casa de Aimara Briseño, 30 anos, como na de seus vizinhos, não se vê uma gota de água na torneira há seis meses. O jeito é armazenar o que vem da chuva ou ir a uma fonte natural ali perto. “A gente implantou o nosso sistema” -
AULA DE ADAPTAÇÃO – Na casa de Aimara Briseño, 30 anos, como na de seus vizinhos, não se vê uma gota de água na torneira há seis meses. O jeito é armazenar o que vem da chuva ou ir a uma fonte natural ali perto. “A gente implantou o nosso sistema” – (Manu Quintero/.)

A costura militar típica do bolivarianismo encantou, em outros tempos, o então deputado federal Jair Bolsonaro, que hoje ataca a Venezuela (mas ainda flerta com o mesmo autoritarismo). Ele chegou a elogiar Chávez quando o tenente-coronel se apossava do Palácio Miraflores, em 1999: “Gostaria muito que sua filosofia chegasse ao Brasil”. “O nacionalismo populista apoiado na ideia de que o militarismo é uma força incontornável aproxima Bolsonaro da Venezuela, mas deve-se lembrar que temos, no Brasil, uma democracia em pleno funcionamento”, diz o diplomata Marcos Azambuja. E, no entanto, apesar de a Venezuela viver evidente ritmo autoritário, parte da esquerda brasileira teima em passar a mão na cabeça da turma de Maduro, como se nada houvesse. Em maio deste ano, Lula, que foi próximo a Chávez quando ambos eram presidentes, visitou a embaixada venezuelana, posou ao lado do retrato de Maduro e postou nas redes sociais: “Tamos juntos”.

DE OLHO NOS OLHEIROS - Aos 11 anos, Santiago Chireño treina basquete a sério, às vezes meio tonto, com fome. Seu plano é ser pinçado pelos estrangeiros que vão lá caçar talentos. Ele sonha alto: “Quero o Lakers” -
DE OLHO NOS OLHEIROS – Aos 11 anos, Santiago Chireño treina basquete a sério, às vezes meio tonto, com fome. Seu plano é ser pinçado pelos estrangeiros que vão lá caçar talentos. Ele sonha alto: “Quero o Lakers” – (Manu Quintero/.)

É uma condescendência no mínimo exagerada para com um regime do qual os venezuelanos querem mais é fugir. Um grupo expressivo deles cruzou a fronteira atrás de vida melhor em países como Brasil e Colômbia, engrossando a debandada dos mais ricos, que voaram para destinos como Miami e Panamá (veja quadro). A conta dos que se foram está em 5,6 milhões de pessoas, ou 20% da população. De acordo com a Organização dos Estados Americanos (OEA), o número deve alcançar os 7 milhões até 2022, o que alça a Venezuela a outro pódio que ninguém quer: o país com o maior fluxo migratório da história moderna, barrando a Síria. Uma multidão de cérebros preferiu ir a ficar com salários na casa dos 10, 20 dólares, o que também a empurra para a pobreza, caso de médicos e professores universitários. Até ladrões foram assaltar onde as carteiras andam mais recheadas, o que é perceptível na queda da criminalidade local.

Aos 11 anos, Santiago Chireño, que mora com a mãe e os seis irmãos na favela San Agostin, em Caracas, nutre já cedo na vida o sonho de partir. Ele leva a sério o basquete, esporte que aportou no país pelas mãos dos americanos. Às vezes, com a barriga vazia, o menino joga meio tonto, mas não perde de vista o objetivo de toda uma geração. Se aparecem por lá uns olheiros estrangeiros em busca de talentos, ele e os outros se esmeram na quadra. O fã de LeBron James planeja: “Um dia eu vou ser chamado pelo Lakers e livrar minha família dessa pobreza toda”. Quando tudo o mais está em falta, sempre resta sonhar.

Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762

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