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Dave Cullen: ‘Armar professores é a proposta mais idiota que ouvi’

Jornalista americano que é o maior especialista em massacres juvenis fala do horror em Columbine, desmonta lugares-comuns e diz como evitar essas tragédias

Apresentado por Atualizado em 9 out 2019, 10h22 - Publicado em 4 out 2019, 06h00

Na manhã de 20 de abril de 1999, quando os jovens Eric Harris e Dylan Klebold deram o tiro que deu início ao mais famoso massacre dos Estados Unidos, o jornalista e escritor Dave Cullen almoçava perto da escola Columbine High School. Ao saber do tiroteio, correu para lá. A partir daí, dedicaria a vida ao massacre: foi o primeiro jornalista a entrar na escola, virou confidente dos sobreviventes e conversou com centenas de testemunhas para montar o quebra-cabeça da tragédia. Em 2009, lançou o relato mais completo do episódio: Columbine (Editora DarkSide) — que chega ao Brasil em versão atualizada, com os diários dos assassinos. Cullen, de 58 anos, foi afetado pelo objeto de estudo: o massacre o levou à depressão. Na entrevista concedida durante passagem por São Paulo, chorou ao exibir as pulseiras que ganhou de sobreviventes. Ele fala sobre as causas e lições de Columbine e atentados similares — até mesmo do massacre ocorrido em Suzano, em março deste ano.

Vinte anos após Columbine, o massacre ainda é a mais famosa tragédia do gênero e inspira novos atiradores em vários países. O que explica isso? A crueldade, o planejamento, a tática utilizada pelos dois adolescentes assassinos, Eric Harris e Dylan Klebold, foram inéditos. Mesmo após outras dezenas de tiroteios, não houve nenhum tão espetacular. O episódio já não está entre os dez mais letais dos Estados Unidos. Mas Columbine é visto como um exemplo a ser seguido e superado. Podemos dizer que foi a mãe de todos os massacres.

Por que os tiroteios em escolas se tornaram tão frequentes? As pessoas me perguntam o motivo dos tiroteios e quando isso vai acabar. A verdade é que estamos vivendo um momento em que elas mesmas se interessam por isso. A TV é inundada de programas sobre crimes reais e tiroteios semelhantes. As pessoas estão usando traumas reais como entretenimento. É um novo tipo de banalização da maldade, e isso é muito perigoso.

O senhor costuma questionar a imprensa e até fez um mea-culpa por ter ajudado a colocar os assassinos sob os holofotes. Mas noticiar os fatos não é dever do jornalismo? Ajudar a propagar sua fama foi, infelizmente, um erro da imprensa. Isso começou lá atrás, mas depois vieram os muitos filhotes de Columbine. São jovens que planejam e executam massacres com o intuito de imitar Eric e Dylan. Foi o que ocorreu no Brasil neste ano, em Suzano. O rosto dos jovens matadores foi reproduzido no noticiário em diversas línguas. É essa exposição que eles almejam. Devemos omitir no noticiário o nome e as imagens de quem comete esse tipo de atentado. Em vez disso, é melhor chamá-los pelo que eles são: assassinos, atiradores, criminosos.

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Como um dos primeiros a chegar à cena do massacre de Columbine, quando notou a magnitude do ocorrido? Levou dias para cair a ficha. Ninguém estava preparado para aquela barbárie. A crueldade dos atiradores era chocante: eles atiravam em qualquer um para matar. Os corpos ainda estavam dentro da escola, e a lista de mortos não tinha saído. As pessoas choravam e diziam não saber por quem chorar, pois não sabiam quem estava vivo ou morto. O carro de uma das vítimas virou um ponto de homenagem e orações. Era o único veículo que estava fora da barreira policial, e os alunos não tinham um corpo para velar. O automóvel, soubemos depois, era de uma garota que foi a primeira vítima dos atiradores.

“Nós pintamos a imagem da escola monstruosa que teria levado esses jovens com problemas a matar treze pessoas. Mas os assassinos de Columbine fizeram o que fizeram por vontade própria”

Há uma tendência a apontar primeiro os pais como culpados pelos atiradores juvenis. É justo? Os pais não são os culpados. Eles não puxam o gatilho. As pessoas precisam culpar alguém. Elas necessitam de um vilão, e muitas vezes os familiares dos atiradores são colocados nesses papéis. Na maioria dos casos, contudo, não há sinais de que os pais tenham feito algo errado na educação dos filhos. Tom e Sue Klebold, pais de Dylan, eram ótimos e muito presentes.

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Não caberia aos pais farejar sinais de desvio? Um pai e uma mãe nunca vão achar que o filho deles é um psicopata. Psicopatas manipulam as pessoas, os amigos, a família. Podemos ver tudo na nossa frente, menos um psicopata. Os pais, geralmente, não sabem o que é um psicopata de verdade, não sabem quais são os sinais. E, para falar a verdade, não há um sinal de que o filho se tornará um assassino. Você passa o dia com ele, cuida dele, ensina-o a ser uma boa pessoa. E, quando vê, ele está na televisão atirando nos colegas de classe com armas e munições que possivelmente estavam escondidas dentro da sua casa. Gosto de usar Dylan como exemplo. Ele às vezes chegava em casa deprimido, sem vontade de fazer as coisas. Mas isso acontece na vida de mais da metade dos alunos de um colégio. São sinais inequívocos de que o jovem vai matar treze pessoas e cometer suicídio em seguida?

No Brasil, os atiradores de Suzano usaram a deep web para planejar o massacre. A internet tem sua parcela de culpa nesse tipo de crime? Sim. No Canadá, potenciais atiradores se conheceram pela internet com o objetivo de perpetrar um ataque. Era um trio que incluía gente de cidades diferentes. Todos os três foram presos antes que pudessem pôr o projeto em ação. Não acho, naturalmente, que a internet seja capaz de produzir assassinos. No refúgio da deep web, no entanto, ficou mais fácil montar grupos de pessoas que comungam da ideia de que cometer atentados em massa é uma coisa legal.

A tragédia de Columbine desencadeou um debate sobre o porte de armas nos Estados Unidos, mas quase nada mudou. O senhor está entre os que acreditam que dificultar a compra de armas evitaria os massacres? Na verdade, retrocedemos nesse ponto. Nem todo mundo deveria ter direito de portar armas de fogo. Hoje, qualquer um com mais de 21 anos pode comprar uma arma sem apresentar atestado médico ou de antecedentes criminais. As pessoas que em teoria não têm condições de comprar armas deveriam estar em uma lista on-line de incapazes. Se os atiradores usam a internet a favor deles, por que nós não a estamos usando ainda a favor da vida? Os Estados Unidos são o único país em que ocorrem massacres quase todos os anos, e nada acontece. A Austrália tinha leis de armas liberais até o tiroteio em Port Arthur. Desde então, decidiu controlar todo o processo de venda de armas de fogo. Tudo o que os governantes são capazes de produzir são ideias que podem piorar as coisas, como armar os professores.

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Depois do massacre de Suzano, a ideia também foi defendida por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Não é uma medida razoável? O presidente brasileiro adora imitar as coisas que Trump faz. A ideia de armar os professores é a proposta mais idiota que já ouvi sobre o assunto. Estaríamos apenas adicionando mais potencial de violência à rotina de adolescentes. Eles não precisam de mais gatilhos, e sim de aconselhamento, de supervisão. O trabalho de um professor é educar para o futuro — e isso funciona à base de confiança. Como os alunos terão confiança em um professor que a qualquer momento pode apontar uma arma para a cabeça deles e ameaçar dar um tiro?

Costuma-se citar o bullying como um dos motivos dos massacres. Ele é mesmo o grande vilão? Creio que não. Falou-se muito que o ambiente da escola de Columbine era tóxico e que havia bullying. Mas era um ambiente normal de ensino médio. Vi vários sites culpando os sobreviventes, porque aqueles dois pobres adolescentes supostamente sofriam muito com o bullying. É mentira. Eric e Dylan mais cometiam do que eram vítimas de bullying. Eles queriam matar da maneira mais cruel a maior quantidade de alunos possível para entrar para a história e ser reconhecidos. Eles escolheram fazer aquilo.

A escola, então, não era um ambiente propício à violência? Quem escreve num diário que quer estuprar pessoas e arrancar a cabeça de uma menina é um coitado? Pois foi isso que Eric escreveu antes de matar treze pessoas em Columbine. Ele era um psicopata que queria fazer coisas ruins aos outros. Nós pintamos a imagem da escola monstruosa que teria levado esses jovens com problemas a matar treze pessoas. Mas eles fizeram o que fizeram por vontade própria.

 

“O presidente brasileiro adora imitar Trump. A ideia de armar os professores é a proposta mais idiota que já ouvi sobre o assunto. Só adicionaria violência à rotina dos jovens”

É possível traçar um perfil preciso de um atirador de massa? Normalmente, esses jovens são pessoas cabisbaixas, tristes, que não são aceitas nos grupos principais do colégio e não se sentem amadas por ninguém. Chega um momento em que eles se cansam de andar nas sombras. Eles precisam se mostrar e ser vistos. Muitos sofrem de depressão e exibem tendências suicidas. “Por que me matar se eu posso matar a todos que não me amam e me maltratam de alguma forma? E o mundo saberá quem eu sou”, eles pensam. Um erro que muitas pessoas cometem é chamar todos de psicopatas. Nem todo atirador é psicopata, nem todo atirador sofreu bullying na escola. Eu os divido em dois grupos: os criativos e os que ambicionam provocar o maior número de baixas. Eric, infelizmente, era as duas coisas em um só. Criativo na hora de planejar o atentado com crueldade e focado na meta de elevar a contagem de mortos.

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De que forma o senhor foi afetado emocionalmente ao passar uma década imerso no massacre de Columbine? Sempre que há novos massacres, tento me desligar. Busco não ouvir nem ver nada sobre aquilo, porque se transformou em algo muito difícil para mim. E o problema maior é que isso se transformou também no meu trabalho, porque acabei me tornando um especialista em tiroteios em massa. Mas convivo com a depressão. Tive duas recaídas durante a elaboração do livro — no capítulo do funeral de Dylan e ao descrever a morte lenta do treinador da escola, que agonizou por três duras horas. Tomo remédios controlados e vou a um psicólogo pelo menos duas vezes por semana. Na época, um agente do FBI foi designado para me proteger em razão das ameaças que eu recebia de jovens que idolatravam os atiradores. Vivi na escuridão nesses vinte anos. É uma escuridão profunda, na qual não se consegue discernir um fiapo de luz.

Como o senhor superou o baque? Só consegui de fato me libertar recentemente, com a ajuda de sobreviventes do atentado. Eles me mostraram que há esperança. É possível reerguer-se após a tragédia. Se eles, que estavam lá, se reergueram, por que não eu? Estou me curando aos poucos. Sinto alegria ao saber que aqueles jovens também estão conseguindo superar a dor. Essas crianças são extraordinárias, assim como a garotada de Suzano.

 

Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655

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