Quando a agulha que coroava a Notre-Dame tombou, sob o olhar de gente do mundo inteiro grudada na TV e dos parisienses que assistiam pesarosos ao fogo engolir o seu tão adorado cartão-postal, o luto logo desaguou em um sentimento de que aquele potente símbolo da cristandade e da própria França precisava ser reerguido. Enquanto o incêndio consumia durante quinze dolorosas horas a catedral, no fatídico 15 de abril de 2019, bombeiros e um batalhão de voluntários driblavam as labaredas para tentar salvar o prédio gótico fincado entre os séculos XII e XIV no ponto em que a Cidade Luz brotou, além de seus valiosos tesouros — tudo insubstituível do ponto de vista das artes e da história ocidental. Não demorou, e um caminhão de euros começou a afluir de bolsos privados, como os dos dois bilionários franceses à frente de conglomerados de alto luxo, Bernard Arnault e François Pinault, que competem nos vários departamentos — inclusive para ver quem dava mais à igreja, que só fez agradecer.
Eis que cinco anos depois, no próximo 7 de dezembro, os portais repletos de simbologia serão reabertos e, segundo projeções, passarão a receber uma multidão maior do que a que visita a ultraclicada Torre Eiffel. A boa notícia para quem aprecia a construção que orna a Île de la Cité, a partir da qual as distâncias na França são medidas, é que ela voltará à vida muito parecida ao que era nos tempos pré-incêndio. Sim, as gárgulas, seres grotescos que representam almas capturadas entre céu e inferno, tão típicas da Notre-Dame, já estão todas lá — parte delas postas na fachada no lugar das que se foram. Os sinos, os mesmos vigiados por Quasímodo, personagem de O Corcunda de Notre-Dame, o livro de Victor Hugo (1802-1885) que deu visibilidade ao edifício, também regressaram — os oito originais, restaurados, ganharam a companhia de mais três, entre eles um badalado na recente Olimpíada que fez de Paris uma festa.
E o pináculo no topo voltou, com o galo agora com asas em forma de chamas, numa alusão a um capítulo, dentre vários, em que a catedral que deverá atrair 40 000 pessoas por dia (versus os 17 000 da torre) esteve sob risco. “Ela é a prova viva de que dá para encantar pessoas sem enveredar pela arquitetura do espetáculo, tão em voga hoje”, observa o doutor em história da arte Felipe Martinez, da Universidade de Amsterdã. Verdade que a Notre-Dame, mesmo sem aço, vidro, luzes e cores, é espetacular ao seu modo e disruptiva desde os primórdios. “Ao surgir, ela era a materialização da arquitetura moderna, quase uma nave espacial descendo do espaço, pela grandiosidade, altura, beleza e pioneirismo”, explicou a VEJA a americana Jennifer Feltman, que monitorou a operação para socorrer as esculturas danificadas da igreja.
A árdua tarefa foi facilitada pela existência prévia de uma réplica digital em 3D que reproduz a catedral à perfeição. A epopeia da reconstrução envolveu 2 000 artesãos recrutados a dedo para recriar as estruturas medievais, como o telhado, refeito em um tipo bem específico de carvalho — o que, embora tenha saciado a ala que queria ver a igreja tal como era, enfureceu ambientalistas preocupados com o desmatamento e tornou a logística mais arrastada. Só para recuperar pinturas e tapeçarias, foram dois anos que sugaram as energias de cinquenta profissionais, curiosamente dedicados à missão em local secreto, em prol da segurança.
Num lance de sorte, inúmeras obras se encontravam em restauro naquela fria primavera em que a catedral foi engolfada pelo fogo (provavelmente fruto de um curto-circuito). Uma delas é o conjunto de estátuas dos doze apóstolos que o arquiteto Eugène Viollet-le-Duc, contratado no século XIX para uma repaginação da igreja que caía aos pedaços, acrescentou perto do pináculo e no qual se incluiu como que para eternizar-se na paisagem. Seu nome andava em alta, e o imperador Napoleão III, que havia escalado o polêmico Barão Haussmann para botar abaixo as vielas e cortar o mapa com bulevares, o deixou à vontade para alterar o que desejasse. Não deu outra: Victor Hugo e outros se insurgiram contra os “modernizadores”, ira que ficou registrada na carta Guerra aos Demolidores. “Sob esta moldura, o tema da preservação do patrimônio, fortalecido no fim do século anterior com os achados greco-romanos, sedimentou-se de vez em Paris”, lembra Felipe Martinez.
A queda de braço entre o novo e o velho é um tópico que mobiliza os parisienses, propensos a fazer bico frente a inovações como as pirâmides de vidro plantadas em frente ao Museu do Louvre. E não foi diferente na atual restauração da Notre-Dame, para a qual se chegou a imaginar a instalação de obras contemporâneas ao lado das antigas e a projeção de trechos da Bíblia nas espessas paredes. “Vai virar a Disney”, disparavam os mais puristas, que venceram a maioria das contendas, porém não todas. A pedido do presidente Emmanuel Macron, modernosos vitrais entrarão em cena (o artista está para ser escolhido), e um sistema de 1 000 projetores ficará a postos para ajustar a intensidade da luz e a cor que banharão a nave sob a qual o humano se sente uma formiga. A luminosidade, aliás, é marca registrada da Notre-Dame, que a recebe em abundância através de suas famosas rosáceas, livres da fuligem. “É interessante como a catedral combina leveza e graça mesmo com todo o seu tamanho”, enfatiza a especialista em arquitetura medieval Lindsay Cook, da Universidade da Pensilvânia.
A saga de restaurar a Notre-Dame propiciou uma aventura arqueológica na qual vieram à tona descobertas extraordinárias. “O incêndio revelou que a estrutura da catedral foi reforçada na Idade Média com armações de ferro antes desconhecidas. A toda hora, aparece uma surpresa”, contou o historiador Maxime L’Héritier, da Sorbonne. Em meio a mais de 1 000 fragmentos de um pedaço do coro, contendo pinturas do século XIII de um brilho espantosamente preservado, emergiu a escultura de um Cristo morto, fascinante pela delicadeza. Sobrevivente das labaredas, a coroa de espinhos atribuída a Jesus será exibida em um relicário bem à vista — etapa de um circuito que passará a ter direção definida e contemplará menos obras, na busca de um espaço com mais respiro para a contemplação. Um naco da coleção ficará num museu previsto para 2025, colado à igreja, que oferecerá um exterior mais amplo e verde.
Visitar a catedral debruçada sobre o Rio Sena, posta de pé no local onde ficava o templo pagão de Júpiter na era em que os romanos davam as cartas, é mergulhar na história — a começar pelos resquícios da Antiguidade expostos na Cripta Arqueológica, a poucos passos dali. Séculos mais tarde, veio a Revolução Francesa, e a Notre-Dame, que sofreu sérios danos, virou Templo da Razão. Seus sinos foram então derretidos para a confecção de armas. Também envolto por aqueles arcos pontiagudos, Napoleão I se autoproclamou imperador, conduzindo a coroa à própria cabeça. “Cada face, cada pedra do venerável monumento é uma página não só da história do país, mas da ciência e da arte”, dizia o orgulhoso Victor Hugo. Daqui a pouco, toda essa riqueza estará disponível ao público. Mas, atenção: para evitar a fila, que se promete quilométrica, melhor fazer reserva on-line. Depois, é desligar o celular e viajar no tempo.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921