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Como a volta do peronismo respinga no Brasil

Com Fernández e Cristina no poder e a economia retraída, ronda novamente o fantasma do “efeito Orloff”. Mas é difícil voltar a ser como eles, amanhã

Por Ernesto Neves Atualizado em 30 jul 2020, 19h36 - Publicado em 1 nov 2019, 06h00

Durou pouco o clima de festa que lotou de peronistas a Avenida Nove de Julho, coração nervoso do centro de Buenos Aires, depois que Alberto Fernández foi declarado presidente da Argentina e Cristina Kirchner, ela de novo, sua vice, no domingo 27. A manhã seguinte veio com gosto de ressaca. Os argentinos despertaram com a notícia de que o atual ocupante da Casa Rosada, Mauricio Macri, havia imposto um duríssimo controle cambial: reduziu de 10 000 dólares para apenas 200 dólares a cota mensal por pessoa de compra da moeda americana, mais ambicionada do que nunca neste momento em que o peso argentino virou pó. O objetivo é estancar a galopante perda de valor da moeda argentina, que em uma semana encolheu 20% diante do dólar. Essa é apenas uma ponta do iceberg que trava a economia do país, à beira da insolvência fiscal e prestes a dar um calote no Fundo Monetário Internacional (FMI), conhecidíssimo em uma nação que já decretou oito moratórias ao longo de sua história.

As urnas mal haviam sacramentado a derrota de Macri — o empresário ungido em 2015 para tentar salvar a Argentina do cenário de terra arrasada deixado por Cristina —, e várias questões já assombravam o Brasil. A primeira foi precipitada logo de saída pelo presidente Jair Bolsonaro. Em périplo pela Ásia, ele disse que os argentinos “escolheram mal” e avisou, em gesto de extrema descortesia diplomática, que não cumprimentaria Fernández. Sempre que pôde, Bolsonaro externou sua aberta preferência pelo liberal Macri, ao mesmo tempo em que o peronista de centro-esquerda Fernández ia visitar Lula na cadeia. No dia da eleição, o chanceler Ernesto Araújo usou o Twitter para sustentar que a chapa vitoriosa representa “fechamento comercial, modelo retrógrado e apoio às ditaduras”. Recentemente, os dois países já haviam lançado dúvidas sobre a continuidade do pacto que mantêm no Mercosul. Os especialistas, porém, tratam de amornar o caldeirão. “Essa troca de farpas serve para agradar ao eleitorado de cada um. Mas Brasil e Argentina não colocarão a ideologia à frente dos interesses comerciais que tanto os unem”, avalia Denise Gregory, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

Brasileiros e argentinos têm economias entrelaçadas. Nossos vizinhos são o quarto maior mercado expor­tador do Brasil, e nós, o número 1 deles. É para aquelas bandas do Rio da Prata que seguem 60% das manufaturas que a indústria nacional vende ao mundo — cesta encabeçada por automóveis, máquinas e equipamentos industriais. Agora, a crise que se fez aguda por lá em 2018 vem causando tremores na balança comercial. Em 2017, ela registrou superávit de 8 bilhões de dólares em favor do Brasil; em 2019, a previsão é de déficit na casa de 300 milhões de dólares. Para quem a esta altura está se perguntando se esse não é o “efeito Orloff” em pessoa (expressão nascida de um comercial de vodca que avisava: “Eu sou você amanhã”), a resposta é sim. De acordo com um estudo realizado pelas economistas Mayara Santiago e Luana Miranda, da FGV Ibre, a inevitável desaceleração da Argentina subtrairá 0,5% de um PIB brasileiro projetado para crescer 0,9% neste ano.

Embora nada desprezível, o impacto da crise que mora ao lado deve parar por aí. E a razão é que o Brasil está hoje fincado sobre bases econômicas muito mais sólidas do que as da fragilizada Argentina. Um dos grandes antídotos nacionais são suas generosas reservas internacionais, um colchão que previne o país de ataques especulativos e da fuga de capitais — coisa que os argentinos não têm. “A solidez macroeconômica é percebida pelo mercado. Nenhum investidor teme uma crise cambial brasileira”, diz o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, colunista de VEJA. O triste tango argentino — mais um, já que este é o sexto período de vacas magérrimas que o país atravessa desde os anos 1980 — produz números de arrepiar: o PIB deve retroceder 2,9% e os preços dispararam 55% no último ano (veja o quadro). Só Venezuela e Zimbábue registram inflação pior.

Embalada por exportações diversas — carne, lã, trigo —, a Argentina chegou a ser a maior economia da América do Sul nos anos 1920. Seu PIB era superior ao de Itália, Suécia e Espanha. Mas, com a derrocada da Bolsa de Nova York em 1929 e a II Guerra, o mundo tremeu, e a festa acabou. Foi no meio desse declínio que os argentinos elegeram, em 1946, o coronel Juan Domingo Perón (1895-1974). Ele implantou uma economia regida pela mão forte do Estado e expan­diu gastos ao sabor de um populismo de viés assistencialista, cuja face mais vistosa era a da primeira-­dama Eva Perón, a Evita. Desse balaio peronista, corrente que desde o fim da ditadura militar esteve no poder por quase três décadas, saíram Fernández e Cristina. Eram desafetos até que ela, à frente da Casa Rosada de 2007 a 2015, o convidou a liderar a chapa para derrubar Macri. Por que a própria Cristina não se lançou? Com indicadores desastrosos, seu governo não deixou saudade, e ela ainda responde a onze processos por corrupção. Só se livrou da prisão graças ao foro privilegiado.

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O retorno de Cristina se tornou possível porque Macri errou feio na mão, e isso bateu direto no bolso dos argentinos: 35,4% vivem hoje na pobreza, quando a promessa era zerá-­la. Impulsionado por uma cartilha neoliberal que pretendia pôr ordem nas contas públicas, modernizar a economia e atrair investimentos de fora, Macri teria de encarar a dura missão de passar a tesoura em subsídios, elevar os juros, controlar o câmbio. Tratava-se de um pacote nada popular, e ele acabou se perdendo ao implantar tudo de forma gradual. Veio o ciclo ruim. Como seu projeto não decolava, os investidores, entre desconfiados e abalados pela desaceleração da economia mundial, não perdoaram. Sem dinheiro, o jeito foi apelar para o FMI.

Do lado brasileiro, a equipe econômica alinhavou um discurso para enfatizar que o fiasco de Macri nas urnas não foi um repúdio ao ajuste fiscal (que o Brasil também quer), mas, sim, à decisão de fazê-lo aos poucos. Como Fernández planeja guindar a Argentina do buraco não está bem claro. O que se sabe é que ele, político de centro-esquerda, tem bom traquejo para conversar com diferentes alas e quer estabelecer um pacto nacional para conter a subida dos preços. Soa como notícia velha. Ao mesmo tempo, precisará refrear os arroubos populistas da vice Cristina. “A situação é tão ruim que vai impor por si mesma medidas de austeridade”, observa Jimena Blanco, da consultoria britânica Verisk Maplecroft. Tomara que sim. Para o bem da Argentina — e do Brasil também.

(./.)

Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659

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