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Argentina: o perigo mora ao lado

Mergulhada em uma crise aguda, o país vizinho caminha para uma mudança de rumo de impacto imprevisível. A pergunta inevitável: vai respingar no Brasil?

Por Katia Mello, de Buenos Aires, e Fernando Molica | Fotos Pepe Mateos
Atualizado em 23 jan 2021, 13h53 - Publicado em 23 ago 2019, 06h30

Já se passaram duas semanas, mas na Argentina não se fala de outra coisa. A derrota do presidente Mauricio Macri para o peronista Alberto Fernández e sua vice, a ex-presidente Cristina Kirchner, ainda por cima por uma diferença de 15 pontos, nas eleições primárias de 11 de agosto alimenta análises e incendeia debates em uma nação apaixonada por política. Quase todo mundo dá como certo o triunfo da chapa Fernández-Kirchner na votação decisiva, em 27 de outubro, e os motivos para essa expectativa desembocam todos no mesmo lugar — o bolso dos argentinos. Até os eleitores de Macri, alguns deles abertamente revoltados, outros meio envergonhados, reclamam da disparada do preço da comida, da gasolina, do gás e da eletricidade. A opção de votar nele, admitem, é pura falta de escolha.

No apagar das luzes de um governo eleito em 2015 para tirar a Argentina do lamaçal econômico criado pela então presidente Cristina (quem diria àquela altura que ela estaria de volta?), a inflação passa dos 50%, o desemprego em 2019 chegou a 10%, a taxa de juros alcança 72% ao ano e a economia em geral, que recuou 2,5% em 2018, deve ir mais para trás ainda neste ano. Na esteira do fracasso de Macri nas urnas, a cotação do dólar disparou para 58 pesos — estava em 9,73 quando ele assumiu. Mesmo assim, os argentinos correram para comprar a moeda americana e se precaver diante de uma provável desvalorização do peso — lá é permitido manter uma conta bancária na moeda americana. Na pior crise da Argentina em quase vinte anos, a preocupação deste lado da fronteira é: a derrocada de seu terceiro maior parceiro comercial vai respingar no Brasil ou, pior ainda, afogá-­lo? O consenso entre os especialistas é que o país vai, sim, sentir reflexos — aliás, já vem sentindo desde o início do ano —, mas tem condições e estabilidade suficientes para não se deixar contaminar demais pelos indicadores dramáticos do vizinho.

Drama, o elemento que dá alma ao tango, virou parte do cotidiano dos argentinos, da classe média para baixo. A queda do poder aquisitivo é particularmente sentida no Centro de Buenos Aires, um ponto em geral movimentadíssimo que hoje exibe lojas às moscas, mesas vazias nos restaurantes e taxistas parados nos pontos, jogando conversa fora (provavelmente, o assunto é política). Mas é na periferia que a falta de dinheiro se faz gritante. Os moradores das favelas não têm a menor condição de pagar o preço dos alimentos e menos ainda dos remédios, caríssimos. Na Villa 31, reduto de Cristina Kirchner, a padaria vende pão amanhecido — e os clientes compram, porque é mais barato. Zerar a miséria foi uma solene promessa de campanha de Macri, repetida à exaustão, e não há pobre na Argentina que não cobre isso dele: a taxa de pobreza abrange 32% da população — é maior do que com Cristina e a mais alta desde 2001. Nessa faixa que não tem como se sustentar, 7% são indigentes, pessoas que passam as noites frias do inverno dormindo no metrô, à porta dos teatros, nas calçadas da Recoleta, bairro chique da capital.

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Ao colocar uma lupa sobre o governo Macri, prestes a se tornar o primeiro conservador a ser derrotado na onda de direita que se espalha pela América Latina e pelo mundo, o Brasil deve ter os olhos bem abertos para não correr o risco de cometer os mesmos deslizes. Depois de doze anos de kirchnerismo, Macri, engenheiro de família milionária que despontou na política como prefeito da província de Buenos Aires, assumiu o governo fincado em uma cartilha neoliberal, com planos de arrumar as contas públicas, modernizar a economia e atrair investidores internacionais. Para isso, teria de tomar medidas duras: cortar subsídios, segurar o câmbio, aumentar juros. Só que, em vez de aproveitar a popularidade em alta e aplicar um choque radical, optou por implementar mudanças graduais — e foi aí que se perdeu.

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SHOPPING VAZIO – Galerías Pacífico: o movimento fraco ofusca o esplendor do tradicional centro de compras (PEPE MATEOS/VEJA)

O projeto não deslanchou, e os investidores, sempre com um pé atrás diante da volatilidade argentina, fecharam o cofre. “O dinheiro externo com que Macri contava não chegou. E  a Argentina, ao contrário do Brasil, depende muito desses aportes”, diz Alberto Ramos, diretor do Grupo de Pesquisas Econômicas para a América Latina do banco americano Goldman Sachs. Acuado, o presidente apelou no ano passado para o Fundo Monetário Internacional, demonizado na Argentina por causa de arrochos econômicos anteriores. A população foi às ruas para protestar, e a cotação de Macri se desvalorizou mais ainda.

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(PEPE MATEOS/VEJA)

O PAPO É POLÍTICA
Em seu ritual de conversar e beber no icônico Café La Biela, o empresário Juan Massara (à esq.) e o analista de relações institucionais Fernando Colton, ambos de 70 anos, afirmam votar em Macri, com ressalvas. “Faltou prestar atenção no povo”, reflete Colton, admirador de Bolsonaro e, assim como o amigo, um saudosista do glamour que ficou no passado argentino


O empréstimo, de 57 bilhões de dólares, contraído para equilibrar as contas públicas, foi acompanhado de um tarifaço que fez subir significativamente o preço de itens essenciais, como gás e eletricidade. Fábricas fecharam, o desemprego aumentou e o apoio ao presidente despencou. Macri é criticado por ter tomado essas medidas sem ouvir sua aliada na coalizão de centro-direita, a União Cívica Radical, comprando aí uma briga evitável e desgastante — que analistas comparam ao isolamento de Dilma Rousseff, no Brasil, por motivos parecidos, e na qual eles também enxergam uma certa ameaça de repetição se o governo atual não cultivar boas relações políticas. “Os parceiros advertiram que a população não suportaria um aumento de tarifas daquelas proporções. Em vez de escutar, Macri reagiu como um médico que acha que o paciente se queixa demais”, diz o cientista político argentino Gustavo Marangoni.

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Em consequência do derretimento da Argentina, nos sete primeiros meses de 2019 as exportações do Brasil para o país diminuíram 40% em relação ao mesmo período do ano passado. O maior impacto foi no setor automotivo, que produz seis dos dez principais itens da pauta. A venda de automóveis (os primeiros da lista) caiu pela metade e a de caminhões recuou mais ainda — 73%. Pela primeira vez desde 2003, o Brasil importou mais do que exportou de janeiro a julho, o que gerou um déficit de 226 milhões de dólares. No total, as exportações para a Argentina baixaram de 17,6 bilhões de dólares, em 2017, para menos de 15 bilhões, em 2018, e neste ano não devem chegar a 10 bilhões. O presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, ressalta que a queda afeta sobretudo produtos industrializados, de alto valor agregado, um item escasso nas vendas brasileiras ao exterior.

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(PEPE MATEOS/VEJA)

ELA QUER MUDAR
Aos 72 anos, Virgínia Sotello, vendedora de tortilhas, vive há cinco décadas na Villa 31, um tradicional reduto peronista. As melhorias realizadas por Macri nessa vizinhança pobre não amenizaram seu aguçado olhar crítico. “Quando não há comida e as contas ficam mais caras, você sonha com uma realidade diferente”, desabafa Virgínia, que fala da festa feita pelos vizinhos quando a agora candidata a vice- presidente Cristina Kirchner aparece por lá

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Despreocupados, os turistas brasileiros fazem as malas para aproveitar o peso barato (veja o quadro). O ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, também se mostrou tranquilo diante da perspectiva de ressurgimento de um velho conhecido de outras crises, o “efeito Orloff”, expres­são tirada de um comercial de vodca dos anos 80 que avisava: “Eu sou você amanhã”. Guedes afirmou não ter “receio do balancê da Argentina”, porque o Brasil está amparado em um leque amplo de parceiros comerciais capitaneados pela China e em reservas de 380 bilhões de dólares (as argentinas estão em 58 bilhões). Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e colunista de VEJA, agrega às evidências de que o Brasil está mais seguro hoje a baixa inflação e conquistas como a autonomia do Banco Central e a Lei de Responsabilidade Fiscal, que favorecem a estabilidade. Tudo isso, diz, permite que, mesmo com o motor da economia persistindo em ratear na recuperação, o projeto liberal brasileiro caminhe de forma mais estruturada e segura do que na Argentina. “Quem diria, há dez anos, que a taxa básica de juros daqui chegaria a 5% no fim do ano? E, no entanto, isso agora é consenso nas previsões dos economistas”, lembra.

Por mais que tenham se decepcionado com Macri, a indústria e o mercado financeiro da Argentina tremem diante da perspectiva da volta do kirschnerismo populista e intervencionista. A esperança é Fernández, político experiente, de estilo conciliador e moderado, que repete até cansar que não dará calote no FMI, um medo sempre presente, e que no passado não se dobrou à forte personalidade de Cristina. Ele foi chefe de gabinete de Néstor, o marido dela, e depois de sua morte se transferiu para o mesmo cargo no governo da ex-­presidente. Mas brigaram, ele se demitiu e ficaram anos sem se falar, até ela chamá-­lo para liderar a chapa e ele aceitar. Foi uma manobra de mestre, como se vê agora. Com altíssima taxa de rejeição, enrolada em seis processos por corrupção, Cristina era a candidata dos sonhos de Macri, praticamente sua única chance de se reeleger. Com a chegada de Fernández, os peronistas — e muitos não peronistas — voltaram a ter em quem votar, e Macri desabou nas pesquisas. Mesmo assim, estavam tecnicamente empatados até a eleição primária ocorrer e virar o jogo.

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(PEPE MATEOS/VEJA)

A NOVA MISÉRIA
Desempregada e sem dinheiro para pagar o aluguel, a faxineira Janaína Echeverría, de 29 anos, experimentou pela primeira vez morar na rua, ao lado do marido, também sem trabalho, e dos quatro filhos, de 3 a 13 anos. As crianças adoeceram depois de quatro meses submetidas ao rigoroso inverno portenho. Socorrida pela prefeitura, a família agora reside em um abrigo, aspirando a dias melhores. “Viver na rua, nunca mais”, diz Janaína


Ao contrário da ex-presidente, Alber­to Fernández transita com desenvoltura nos círculos que decidem os rumos da economia e dialoga com campos políticos diversos. Atribui-se principalmente à sua presença a raríssima união do peronismo — um emaranhado de várias correntes que não se dão e vivem às turras — em torno da chapa montada pela impopular Cristina (veja a coluna de Roberto Pompeu de Toledo). Como de boba não tem nada, ela vem se portando como a vice perfeita. No dia da votação, só se deixou ser fotografada na frente da urna por um profissional de sua confiança. Desde então, aparece pouco, faz declarações contidas e prefere se manifestar pelas redes sociais.

Já Fernández não perde oportunidade de se promover. Em uma prova recente de seu jogo de cintura, ele voltou atrás na anunciada decisão de não ter “nada para falar” com Macri e não só aceitou conversar, como fez questão de manifestar confiança de que ele vai terminar o mandato nos dias seguintes à eleição — chegou a pairar no ar uma ameaça de ruptura institucional. Na mesma toada, também reagiu com indignação contra o presidente brasileiro (“É racista, misógino e violento”), mas depois optou por colocar panos quentes no destempero verbal de Jair Bolsonaro, que lamentou o retorno dos “bandidos da esquerda” na Argentina e previu uma debandada de argentinos para o Brasil, fugindo da “esquerdalha”. Ciente de que os dois países são interdependentes e precisam conviver, o candidato declarou que o mercado argentino permanecerá aberto aos produtos brasileiros e que não quer briga com ninguém. É bom que Fernández se arme de bastante paciência e espírito de conciliação, porque, se chegar mesmo à cabine de comando do avião argentino, a previsão é de intensa turbulência pela frente. E a copiloto não ajuda nada.

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Publicado em VEJA de 28 de agosto de 2019, edição nº 2649

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