Abuso sexual, padres e câmeras escondidas
Documentário dos irmãos poloneses Tomasz e Marek Sekielski escandaliza ao mostrar encontros entre sacerdotes pedófilos e suas vítimas
O cheiro de leite causa náuseas à polonesa Anna Misiewicz, de 39 anos. A bebida remete à memória olfaltiva de quando Anna, aos sete anos de idade, começou a ser abusada por um padre da paróquia de Kielce, na Polônia. O padre bebia leite antes de se masturbar, para depois beijá-la.
O relato é feito pela própria Anna no documentário polonês Tylko nie mów nikomu (Tell no one, em inglês, ou Só não conte a ninguém, em tradução livre), lançado no sábado 11 apenas no YouTube. A versão em inglês em menos de uma semana já alcançou cerca de 20 milhões de visualizações no mundo inteiro, ocupando o primeiro lugar nos trends do canal da internet não apenas na Polônia, mas também na Noruega, na Irlanda e na Islândia.
O filme, dirigido pelo cineasta polonês Tomasz Sekielski e produzido por seu irmão Marek Sekielski, coloca frente a frente os padres pedófilos e suas vítimas. Em muitos momentos, o diretor usa câmeras escondidas para registrar os dolorosos e constrangedores encontros, como o que aconteceu entre Anna e seu algoz.
Sem saber que estava sendo filmado, o padre, já bem idoso, coloca as mãos no rosto e diz estar arrependido. Depois, chega a lhe oferecer dinheiro para tentar recompensá-la pelos danos psicológicos. Apesar de perdoá-lo, ela responde: “Padre, você se masturbou usando minhas mãos. Nenhum dinheiro pode pagar por isso. Está aqui dentro”.
No berço do papa João Paulo II, onde a 90% da população é católica, a palavra padre é quase “santa” na Polônia, principalmente para os moradores de cidades pequenas, como Kielce. Por isso, o documentário causou tamanho estardalhaço. Realizado por meio de crowdfunding (financiamento coletivo), o filme agora é assistido coletivamente em locais públicos.
Quando procurada pelos irmãos Sekielski, a cúpula da Igreja Católica polonesa afirmou que o documentário era parcial – resposta incluída no final do filme. Porém, com a fama do filme, a arquidiocese de Gniezno sentiu-se na obrigação de dar outra resposta. O respeitado arcebispo Wojciech Polak se disse “emocionado”, desculpou-se e ainda parabenizou o diretor por sua “coragem”.
“O grande sofrimento das vítimas desperta sentimentos de dor e de vergonha. Agradeço a todos que têm a coragem de relatar sua dor. Peço perdão pela ferida causada por clérigos”, escreveu Polak em um comunicado.
Mas nem todos os líderes da igreja polonesa reagiram assim. O arcebispo ultraconservador de Gdánsk, Sławoj Leszek Głódź, declarou que “tinha mais o que fazer do que assistir a algo sem valor”.
O episódio na Polônia é parte da guerra santa que acontece a céu a aberto entre progressistas e conservadores do Vaticano em relação às medidas que o Papa Francisco, em sua cruzada contra a pedofilia, vem tomando.
No dia 9 de maio, o pontífice anunciou uma nova norma que torna obrigatório aos membros do clero denunciar suspeitas de abusos sexuais ou de poder ou de acobertamento de casos ocorridos dentro da Igreja Católica.