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“Aborto não tem a ver com a lei, mas com o quão pobre a gestante é”

A americana Michelle Oberman, da Universidade de Santa Clara, defender maior esforço na prevenção da gravidez e em melhores condições de vida para as mães

Por Thais Navarro
Atualizado em 12 ago 2018, 08h09 - Publicado em 12 ago 2018, 08h00

Em uma semana marcada pelos debates sobre a legalização do aborto na Argentina, a americana Michelle Oberman alerta para o fato de as leis proibitivas e criminalizantes interferirem muito pouco nas estatísticas dessa prática em países pobres. Em El Salvador, onde o aborto é completamente ilegal, as taxas são proporcionalmente maiores do que as dos Estados Unidos.

“Aborto não tem a ver com fato de ser legal ou ilegal no país em que você vive, mas com o quão pobre você é”, afirmou Oberman, professora de Direito na Universidade de Santa Clara, na Califórnia, e especialista questões legais e éticas envolvendo gravidez, adolescência e maternidade.

Michelle Oberman é a autora dos livros “When Mothers Kill: Interviews from Prison” (em tradução livre, Quando as Mães Matam: entrevistas da prisão) e “Her Body, Our Laws: On the Front Lines of the Abortion War, from El Salvador to Oklahoma” (Seu Corpo, Nossas Leis: na vanguarda da guerra do aborto, de El Salvador a Oklahoma), ainda não publicados no Brasil.

Para ela, tão importante quanto a mudança das leis é também a melhoria nas condições de vida das mulheres.

Confira abaixo sua entrevista a Veja.

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Michelle Oberman: maioria aborta por não ter condições de sustentar um filho. (//Divulgação)

Que conclusões você chegou sobre em suas pesquisas sobre o aborto nas Américas? Em janeiro, publiquei um livro sobre minha visita a El Salvador e ao Chile para estudar o que acontece quando o aborto é completamente ilegal. E sendo americana, também quis procurar entender o que os cidadãos americanos achavam das leis de aborto e do que mudava com ou sem elas.

Eu pensava que a lei importasse muito e fizesse muita diferença. Pensava que, se a alterasse, haveria mudança gigante nas estatísticas. Mas, estudando países onde isso é ilegal, comecei a perceber que a lei não importa tanto assim. Ela não muda significativamente as estatísticas do aborto. Em países que tornam o aborto ilegal, as taxas não caem. Mesmo em países onde já é ilegal, as taxas são muito altas.

Qual o exemplo mais gritante dessa situação? El Salvador. Lá, o aborto é completamente ilegal, em qualquer circunstância. Mesmo assim, as taxas são mais altas do que as dos Estados Unidos. As pessoas podem se perguntar por que as taxas são tão elevadas em El Salvador se a prática é completamente ilegal. A resposta é óbvia: porque as mulheres são muito pobres. Se elas já são tão pobres a ponto de não conseguirem alimentar os filhos que já têm, elas não podem arcar com outros.  A pobreza é algo sobre a qual não se pensa muito quando se discute a legalização do aborto, mas é uma variável muito importante. Essas mulheres abortam quando não têm condições de arcar com as despesas de mais um filho. Aí, não importa se o aborto é legal ou não.

Mas há abortos também nas classes média e alta. Quando você olha para quem são as mulheres que mais abortam, na maioria dos casos elas muito pobres. A população que está abaixo da linha de pobreza, nos Estados Unidos, responde pela metade dos casos de aborto. Isso é assustador. Aborto não tem a ver com se no país que você vive é legal ou ilegal, mas com o quão pobre você é. Claro que tem mulheres ricas abortando. Mas se você levantar as estatísticas e quiser buscar soluções para reduzir o número de abortos, não é nesse público que você tem que se focar. Seria uma perda de tempo, enquanto há mulheres escolhendo abortar por não terem condições financeiras. Deveria-se parar de se focar tanto na lei, e sim focar em combater as condições em que essas mulheres vivem.

O que acontece quando o aborto é legalizado? É difícil identificar todos os fatores decisivos que fazem as taxas de aborto aumentarem ou diminuírem. Nós podemos ver, nos Estados Unidos, que logo de legalizado em alguns estados, o número de abortos aumentaram em alguns casos. Mas é preciso tomar cuidado com essas estatísticas porque é muito difícil saber exatamente quantos abortos aconteceram quando a prática era ilegal. Nos anos 1970 e 1980, as taxas continuaram altas. Mas no começo dos anos 1990, começaram a diminuir. Todo ano, diminui cada vez mais, mesmo que a lei permaneça a mesma. A mudança é a melhoria nos métodos contraceptivos e no acesso a eles. Há o DIU, as pílulas e adesivos que você coloca a cada três meses.  

Mesmo com a legalização do aborto, seria aconselhável investir mais nos meios contraceptivos? A França é um caso muito interessante: tem a taxa de aborto mai baixas do mundo, a metade do número dos casos dos EUA. O motivo é que os franceses atuam muito na prevenção. Quando a mulher fica grávida sem ter planejado a criança, eles dão muito apoio. É um país que tem um bom sistema público de saúde, e a gestante tem acesso a ele e a bons médicos. Ela não precisa deixar seu trabalho, se preocupar com quem vai cuidar da sua criança para ela trabalhar. Eles pensaram em tudo isso. Há até apoio financeiro para alguns casos.  Dinheiro para comprar fraldas, por exemplo. No meu país, não há. A mulher fica grávida muitas vezes por não ter dinheiro para adquirir contraceptivos. Não tem dinheiro para pagar um aluguel, não tem um trabalho flexível. Nos Estados Unidos, é mais caro ser mãe. É algo muito delicado pensar no que leva uma mulher a abortar. Você tem de pensar em como dar apoio a ela. Nos Estados Unidos, pelo menos 10% dos bebês nem sequer têm fraldas suficientes.

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Muitas pessoas contrárias à legalização do aborto argumentam que não quererem ver o dinheiro de seus impostos empregados nessa prática pelo sistema público de saúde. Parece razoável, em seu ponto de vista? Eu entendo o argumento dessas pessoas, que não querem ver seu dinheiro usado em algo que não concordam. Entendo porque sou americana, e meu dinheiro também é usado para coisas com as quais não concordo, como fazer guerras ou separar pais de suas crianças e expulsar os refugiados nas fronteiras. Se eu pudesse impedir que meu dinheiro fosse usado para essas ações, eu me sentiria melhor. Mas eu diria: isso é o que realmente incomoda você? Seu dinheiro ir para abortos? Você deveria se preocupar, então, com medidas públicas que ajudem essas mulheres e as façam querer ter seus filhos. Eu posso ser pró-escolha, e outra pessoa pode ser pró-vida, mas nós certamente temos valores em comum. Nós apoiamos medidas que vão dar apoio para as mulheres terem seus filhos. Tornar o aborto ilegal não faz com que ele desapareça.

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