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A revolta dos novos tempos

Macron sente na pele a força das mobilizações convocadas pela internet, fenômeno global que os governos não entendem nem sabem como enfrentar

Por Carol Zappa e Thais Navarro
Atualizado em 30 jul 2020, 20h02 - Publicado em 30 nov 2018, 07h00

Em vários pontos do país, a população sai às ruas e promove grandes manifestações. A convocação para as mobilizações parte, quase que exclusivamente, das redes sociais. Não há lideranças nítidas e sobram animosidade e desdém para com partidos políticos, sindicatos e demais instituições. Um sentimento comum permeia o movimento: “Estamos fartos”. A descrição refere-se à onda de agitação que varre a França desde o início de novembro e que no sábado 24 fez da avenida mais famosa de Paris, a Champs-Elysées, quase um campo de batalha — mas bem poderia ser a da onda de marchas populares que tomou o Brasil de surpresa em 2013. Ambas se inserem na nuvem de insatisfação latente que tem disseminado pelo mundo o desejo de mudar tudo o que está aí. “Se há um paralelo entre os protestos dos franceses e os dos brasileiros, ele se encontra justamente nesta situação que ninguém previu: os partidos faliram e enfrentamos uma crise geral do Estado”, resume Roberto Romano, professor de ética e filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

No Brasil de 2013, o estopim das manifestações foi um aumento das passagens de ônibus. Elas reabilitaram a força dos protestos de rua e emendaram na rebelião anticorrupção e anti-PT, que culminou, três anos depois, com o impeachment de Dilma Rousseff. Na França de agora, o ponto de partida foi um aumento dos impostos sobre combustíveis, que só entrará plenamente em vigor em janeiro de 2019. Ele faz parte de um projeto meritório do presidente Emmanuel Macron: reduzir drasticamente o uso de veículos em prol do meio ambiente. Mas a perspectiva de pagar mais pela gasolina pegou muito mal no interior do país, onde a mobilidade depende dos carros e a população se ressente há tempos da queda do poder aquisitivo, do desemprego estacionado em 10% e da carga de tributos — que compõem 45% do PIB francês.

Muitos votaram em Macron, que encarnou com sucesso o novo na eleição de 2017, exatamente por achar que ele melhoraria a vida da classe média. Aconteceu o contrário, e os gilets jaunes — “coletes amarelos”, parte do kit obrigatório de emergência nos automóveis que virou símbolo do movimento — saíram às ruas em massa. O que começou com um abaixo-­assinado na internet contra o alto preço da gasolina ganhou impulso em outubro, com as primeiras convocações de voluntários para bloquear estradas, e desaguou nos protestos em massa de novembro. “Os gilets jaunes acham que os partidos são incapazes de produzir soluções, o que faz parte da química do populismo”, diz o cientista político Dominique Reynié.

No sábado 17, quase 300 000 franceses bloquearam estradas e ruas e gritaram palavras de ordem (“Fora, Macron” era uma constante), do Mediterrâneo ao norte industrializado do país. Duas pessoas morreram e centenas ficaram feridas. No sábado seguinte, menos gente apareceu — cerca de 100 000 —, mas o foco foi em Paris e os embates com policiais, em meio à fumaça de gás lacrimogêneo e a jatos dos canhões de água, deram mais visibilidade ainda à causa. O governo acusou a extrema direita de se infiltrar e provocar o tumulto. “Trata-se de uma frente muito ampla que une pessoas frustradas por motivos diferentes, vindas de segmentos diversos da sociedade e aglutinadas em torno da indignação contra o aumento de impostos”, explica Jérôme Fourquet, diretor do instituto de pesquisa Ifop. Contando com o apoio de 73% da população, que considera suas queixas legítimas, a mobilização segue em frente — a hashtag #giletjaune acumula 7 milhões de mensagens.

Manifestações contra o governo são parte do dia a dia na França desde que o mundo é mundo. “O protesto atual lembra, de certa forma, o movimento pujadista (numa referência a seu líder, o populista Pierre Poujade), dos anos 1950, quando camponeses e a classe média baixa se insurgiram contra a legislação tributária e a mobilização se alastrou por todos os setores que se sentiam abandonados pelo governo”, diz o historiador americano Edward Berenson, diretor do Instituto de Estudos Franceses da Universidade de Nova York. O maior diferencial dos “coletes amarelos” é sua espontaneidade e a distância de agremiações tradicionais — aspectos que, segundo Berenson, os aproximam de outra célebre agitação popular, a revolta dos estudantes em maio de 1968.

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Por se tratar de uma novidade, a mobilização atual desnorteia os políticos. Macron, que iniciou o mandato com 66% de aprovação e hoje não passa de 26%, até agora respondeu com a dubiedade que lhe é típica. “Sei que existe um sentimento de raiva. Mas não aceito a demagogia que o cerca”, declarou em uma recente reunião de prefeitos. Ele é visto por boa parte da população como um “presidente dos ricos”, por ter cortado impostos de empresas, bancos e grandes fortunas, e as metas de seu plano econômico — austeridade fiscal, redução dos gastos públicos e fim dos “desperdícios” nos benefícios sociais — antecipam mais revolta.

À esquerda e à direita, os partidos tradicionais têm se esmerado em calorosas manifestações de apoio aos gilets jaunes. “É um verdadeiro movimento popular de massas”, proclamou Jean-Luc Mélenchon, líder da coligação de esquerda França Insubmissa. “O governo se recusa a ouvir esse grito de cólera e desesperança do povo francês”, bradou Marine Le Pen, dirigente da extrema direita, que pediu nada menos que a dissolução da Assembleia Nacional — na qual Macron, que ainda tem quatro anos de mandato pela frente, conta com confortável maioria. Indiferente aos políticos, o movimento já convocou nova manifestação para o sábado 1º de dezembro. Pelo jeito, muita hashtag mobilizadora ainda há de vir por aí.

Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2018, edição nº 2611

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