Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

À procura de si mesmo

Ao circular entre os poderosos no G20 de Buenos Aires, Macri tenta reabilitar a imagem de gestor eficiente, demolida por uma das piores crises do país

Por Thais Navarro
Atualizado em 30 nov 2018, 07h00 - Publicado em 30 nov 2018, 07h00

Eleito presidente em 2015, o empresário Mauricio Macri deu fim a mais de uma década de reinado do casal Kirchner na Casa Rosada e trouxe a promessa de mudança: com discurso liberal sem ser raivoso, abriu o mercado de capitais, enxugou a máquina estatal e ainda, sorte do destino, surfou na disparada do preço dos cereais, produto de exportação por excelência da Argentina. Mas o vento virou, embalado por uma das piores secas da história, que derrubou as exportações, e pela forte oposição a medidas que mexiam no bolso da população. Hoje os indicadores econômicos chafurdam na lama, arrastando para o buraco a popularidade de Macri, na faixa dos 23%. Mesmo assim, ele briga para reencontrar-se e viabilizar sua reeleição em 2019. A reunião do G20, sediada em Buenos Aires nesta sexta-­feira, 30, e no sábado 1º, é para ele uma chance de projetar a imagem de líder que transita com desenvoltura entre os mais poderosos do mundo.

Quando ficou acertado que Buenos Aires acolheria o G20, em junho de 2016, a vitrine que Macri tinha para exibir era bem diferente. Agora, as ruas andam tomadas por protestos — ou violência pura e simples, como ocorreu no dia da final da Copa Libertadores da América (veja o quadro na pág. 66). Para garantir a segurança do G20, o governo acionou 22 000 policiais e decretou feriado nacional durante a reunião. O próprio Macri sugeriu à população que aproveitasse para viajar. Entende-se a preocupação. A lista de presença vai de Donald Trump, Xi Jinping e Vladimir Putin ao príncipe saudita Mohammed Bin Salman, cada vez mais enredado nos mistérios do assassinato do jornalista Jamal Khashoggi.

NA LUTA – Macri: medidas para tentar sair da crise e ser reeleito em 2019 (Geoffroy Van Der Hasselt/AFP)

Desdobramentos do encontro em prol de Macri, porém, têm lá suas limitações. “Do ponto de vista internacional, é um feito histórico e pode ser útil para promover o slogan colado ao presidente: ‘Voltamos ao mundo’ ”, avalia o sociólogo Gastón Varesi, da Universidade Nacional de La Plata. Mas a crise é tão profunda que mesmo um evento dessa magnitude não será capaz de tocar no essencial: o descontentamento generalizado. “O argentino médio desconhece os assuntos tratados na cúpula do G20. Ele está muito mais preocupado com a situação econômica do país”, afirma a cientista política Maria Victória López, da Universidade Nacional de Córdoba.

A atual crise econômica, que encontrou o fundo do poço em 2018, é uma das piores da história da Argentina — e olhe que o país é cheio delas. Macri herdou do kirchnerismo um Estado inflado, o gasto público nas alturas e um país que havia se rendido diversas vezes à política de controle artificial de preços. Quando assumiu, ele pôs em prática um pacote que mirava o equilíbrio fiscal, mas, ao passar a faca aqui e ali em subsídios e cargos, viu sua aprovação despencar. Tomou então uma medida para fomentar o consumo interno, baixando as taxas de juros. Isso se revelou um tremendo equívoco: os investidores debandaram.

Seguiu-se uma brutal desvalorização do peso argentino em comparação com o dólar, de quase 50% desde janeiro. Para conter a escalada, Macri caminhou para o extremo oposto: elevou muito as taxas de juros, atualmente entre as maiores do mundo. A inflação, que já era alta, explodiu: o acumulado deste ano deve ficar em torno de 47%. Foi no auge do desespero que o presidente recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) — sigla, aliás, que revolve memórias ruins de arrocho e pobreza no povo argentino. O total do empréstimo, negociado entre junho e setembro, soma estratosféricos 57 bilhões de dólares.

Continua após a publicidade

O acordo com o FMI desanuviou um pouco o horizonte: os investidores comemoraram. Também recentemente, Macri conseguiu aprovar na Câmara dos Deputados e no Senado seu plano orçamentário para 2019, apesar de toda a grita das centrais sindicais descontentes com a tesoura nos gastos públicos. As chances de o presidente permanecer na Casa Rosada residem, em boa parte, no sucesso dessa proposta. “Uma reeleição depende dos rumos da economia no próximo semestre”, analisa o cientista político Jorge Mangonnet, da Universidade Columbia, nos Estados Unidos.

O bloco governista, o Cambiemos, não mostra nenhuma intenção de escolher outro nome em 2019. “Para os políticos da coalizão, Macri ainda tem a melhor imagem e a posição mais favorável na corrida eleitoral”, diz o economista Iván Carrino, da Universidade de Buenos Aires. Isso faz com que, em um ambiente que clama por uma guinada na política, a próxima eleição presidencial tenha como perspectiva zero de novidade. Para confrontar o candidato Macri, o nome mais forte é, vejam só, o de sua antecessora, Cristina Kirchner.


“O FUTEBOL É POPULAR PORQUE A ESTUPIDEZ É POPULAR”

CENAS LAMENTÁVEIS - Torcedores do River presos após o ataque ao ônibus do Boca: futebol no chão (Ivan Pisarenko/AFP)

O presidente da Argentina, Mauricio Macri, que já dirigiu o Boca Juniors, chegou a dizer que preferiria uma final de Libertadores da América entre um clube argentino e um brasileiro, para evitar dor de cabeça. “Já me estresso por causa do meu trabalho, ter ainda de somar o stress de uma final entre Boca e River…”, lamentou. Conhecido o derradeiro duelo do torneio, ele transformou a decisão que fingia não querer em evento político, “uma gigantesca oportunidade para a Argentina voltar a demonstrar seu nível de maturidade”. O primeiro jogo, disputado no estádio La Bombonera, do clube boqueño, terminou empatado em 2 a 2. O segundo, na casa do River, previsto para o sábado 24, não aconteceu — e talvez nunca aconteça. Acabou antes de começar, numa esquina de Buenos Aires onde o ônibus com os jogadores do Boca foi apedrejado. Até gás pimenta foi arremessado contra a delegação. A Confederação Sul-­Americana de Futebol, a Conmebol, remarcou o jogo cancelado para 9 de dezembro, por aí, em algum lugar do mundo, em Madri, no Paraguai, no Catar, nos Estados Unidos, sabe-se lá onde, talvez numa cidade imaginária qualquer de Julio Cortázar. Moral da história: a maturidade argentina celebrada por Macri revelou que anda de cueiros.

A vergonha do clássico que não houve, o jogo do século, resulta de uma soma da imbecilidade de um grupo de torcedores, da inépcia das autoridades responsáveis pela segurança e da incompetência dos cartolas da Conmebol, que sonhavam em fazer da Libertadores uma réplica da Champions League europeia e caíram no ridículo. Nada muito diferente do que temos no Brasil.

Continua após a publicidade

Celebra-se um certo “futebol-raiz”, avesso à modernidade, feito de paixão visceral, romântico, sem as amarras do marketing, mais sujo do que limpo. É uma bobagem. A raiz de tudo, o fundamento, tem um nome: impunidade. É evidente que a questão da segurança nos estádios excede a esfera esportiva. Na Argentina, o futebol está contaminado pela presença de quadrilhas no coração das torcidas organizadas. Para aumentar a temperatura do caos, a Conmebol tem uma postura que só alimenta a esperteza, a contrafação e o crime. Quem deveria controlar as regras do jogo acaba favorecendo a malandragem. No confronto semifinal entre River e Grêmio, o técnico da equipe argentina, Marcelo Gallardo, fez troça da suspensão que havia recebido em outra partida, perdendo o direito de ficar à beira do gramado: falou com seus auxiliares no banco de reservas por um radiocomunicador e foi ao vestiário passar instruções a seus atletas, o que é proibido a quem cumpre punição. No fim do jogo, o técnico comentou o episódio sem pudores, com a empáfia de quem sabe que as transgressões são permitidas. “Não me arrependo de nada”, disse Gallardo. Foi multado em apenas 50 000 dólares e punido com meras três partidas de suspensão. O desfecho é previsível: se o treinador da equipe finalista da Libertadores não se importa com a consequência de seus atos, os torcedores sentem-se autorizados a quebrar ônibus.

Dentro de campo é cada vez maior a discrepância de qualidade do futebol jogado na América do Sul e na Europa. Parece outro esporte. O isolamento é uma decorrência natural. Em 2018, depois da Copa da Rússia, foram realizados apenas três amistosos entre seleções sul-­americanas e europeias. Quatro anos atrás, logo depois do Mundial do Brasil, houve o dobro de partidas no mesmo intervalo de tempo. Existe solução? Sim, e olhar para a história recente é sempre bom. Nos anos 1980, a Inglaterra vivia o mesmo tipo de violência nos estádios. Tudo mudou depois da final da Liga dos Campeões de 1985, quando 39 torcedores morreram antes do jogo entre Liverpool e Juventus. Uma punição exemplar — os times ingleses foram suspensos das competições europeias por cinco anos — e o envolvimento efetivo das autoridades policiais e judiciárias transformaram o futebol inglês no mais organizado do mundo. É caminho improvável ao sul do Equador. Como num labirinto sem saída, não há chance de que o jogo que nunca houve venha a acontecer em condições dignas — e, diante disso, só resta relembrar uma máxima de Jorge Luis Borges (1899-1986), que não via graça alguma em 22 homens correndo atrás de uma bola: “O futebol é popular porque a estupidez é popular”.

Alexandre Senechal

Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2018, edição nº 2611

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.