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‘A mulher estuprada não mantém os olhos na sua direção’

Ativista congolesa conta abusos que mulheres - e suas famílias - são obrigadas a enfrentar sem descanso em um país onde todos vivem em perigo permamente

Por Cecília Araújo
7 jul 2012, 16h09

“Um dia, eu estava buscando sementes para plantar no meu terreno quando me deparei com ela dentro de um buraco. Depois de a violentarem, cortarem seu clitóris e mamilos, também furaram seus pés para que não pudesse fugir ou buscar ajuda.”

Maman Marie Nzoli

Maman Marie Nzoli se assusta ao subir a escada rolante do Hotel Grand Hyatt, em São Paulo. Habitante da zona rural da República Democrática do Congo, a ativista nunca tinha visto nada parecido. Também não conhecia elevador nem chuveiro elétrico, conta. Não conseguia entender por que a piscina é azul e ficou impressionada com as árvores tropicais brasileiras. Vestida com roupa típica do seu país, colocou um lenço na cabeça para sair mais bonita nas fotos. Preocupação essa bem distante das que precisa administrar em seu país, abalado nos anos 1990 por duas guerras civis e que ainda enfrenta diversos conflitos armados – é lá que atua, por exemplo, o Exército de Resistência do Senhor (LRA, na sigla em inglês), milícia liderada pelo guerrilheiro Joseph Kony. Muitos dos moradores da região passam fome, mesmo vivendo em uma terra fértil para cultivo e rica em minério e outras riquezas, exploradas por outros países. E foi inicialmente para combater a escassez de comida que, em 1983, Maman Marie fundou com outras 17 colegas a organização não-governamental Coperma, cujo principal objetivo era unir pensar em uma alternativa para o cultivo de alimentos.

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No fim da década de 1990, porém, os problemas dos habitantes da sua cidade, Butembo, pioraram. Mulheres e meninas passaram a ser estupradas, e garotos foram levados por grupos armados. A instituição passou, então, a atender vítimas da I Guerra do Congo (1996-1997). Pouco depois, quando o segundo confronto estourou (1998-2003), a situação se agravou ainda mais, e a Coperma voltou-se para assistência médica e psicossocial, no intuito de ajudar a população a superar os traumas emocionais. Quase 30 anos se passaram desde a criação da entidade que, sobrevivendo à base de doações, tem hoje 12 centros de apoio aos moradores locais. Mas a violência extrema a que os congoleses são submetidos diariamente só fez crescer nesse tempo: a cada minuto, pelo menos uma mulher é estuprada no país. Kivu do Norte, onde vive Maman Marie, é uma das províncias mais afetadas. Rebeldes, soldados governamentais e civis abusam das garotas, que engravidam cada vez mais jovens. Em uma sociedade extremamente machista, as vítimas de estupro – mulheres e homens – temem dizer que sofreram esse tipo de violência, o que dificulta o atendimento médico adequado.

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E foi para revelar parte desses abusos – e pedir ajuda da comunidade internacional – que a ativista deixou a África pela primeira vez. Nesta semana em São Paulo, contou a um público majoritariamente feminino de que forma a violência sexual é usada como uma arma de intimidação em seu país. “Passar doenças como aids às vítimas é uma forma de dizimar o inimigo mais rapidamente”, explicou. De acordo com ela, homens armados, muitas vezes militares do próprio governo, invadem casas e propriedades na hora que bem entendem, tiram a roupa das mulheres e, com uma faca, cortam seu clitóris e seus mamilos, para que não sintam mais prazer sexual. Depois, elas são estupradas. “Muitas vezes, as mulheres chegam ao hospital urinando involuntariamente, tamanha a violência usada contra elas.” Em entrevista ao site de VEJA logo após sua palesta, Maman Marie relatou outros casos dessa chocante realidade que, para ela, deve ser reconhecida como genocídio. Confira, abaixo, os principais trechos da conversa:

Maman Marie
Maman Marie (VEJA)

Esta é sua primeira viagem fora da África. O que está achando? O Brasil é muito avançado em relação aos poucos países que já conheci, na África. As ruas são limpas, e há eletricidade para todo lado. Não imaginava que alguém no mundo teria uma vida como a que vocês têm aqui. Na República Democrática do Congo, apenas um grupo de comerciantes ricos vive em casas confortáveis, com luz e água. Quando você quer usar o computador, por exemplo, precisa de geradores. Os veículos são raros e velhos, muito mais simples do que os do Brasil. Quando cheguei aqui, pensei que acontecia um casamento desses de pessoas ricas, sabe? No meu país, só nessas ocasiões há tantos carros, bonitos e modernos, um atrás do outro.

E como é sua vida na República Democrática do Congo? Sou agricultora e cultivo o que como: batatas, repolho e feijão. Alugo um terreno comunitário para isso. Também vendo madeira, o que me ajudou a comprar um veículo antigo e usado. Na verdade, meu país é rico: tem diamante, ouro, madeira, muitas coisas. Mas a guerra existe para que os poderosos possam distrair o povo e pegar tudo isso para eles próprios. Depois, vendem as nossas riquezas e minerais para as grandes potências. A população é a grande vítima.

A sua organização, Coperma, consegue ajudar grande parte dessas vítimas? Atualmente, temos 12 centros de recuperação para atender essas pessoas que sofrem com as consequências da guerra. Mas não são suficientes: apenas um décimo das vítimas sexuais chega aos nossos centros. Falta alcançar os outros nove décimos. É um trabalho que demanda uma dedicação imensa. E é preciso colocar a psicologia na frente, para não se deixar afetar pelos problemas das vítimas.

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Como as vítimas de violência sexual chegam aos centros da Coperma? Acompanhadas pelos maridos? Não, elas nunca chegam com o marido! Nunca! Quando sua mulher é violentada, o homem a deixa imediatamente. Muitas acabam mendigando depois de serem abandonadas pela família e passam a ser discriminadas pela sociedade. Para ajudá-las, nós do Coperma fazemos uma sensibilização em toda a aldeia, explicando que, caso uma pessoa seja vítima de violência sexual, ela deve nos procurar. Quando uma vítima de estupro chega ao Coperma, fazemos os primeiros socorros e a levamos ao hospital público em seguida. O médico interna a paciente, dá os medicamentos necessários, e ela permanece no local com um de nossos profissionais, que lhe dá apoio psicológico. Para conseguir ajudar toda a aldeia, formamos ajudantes locais, que andam à paisana e agem discretamente, a fim de nos informar sobre as violações. São eles que se encarregam de trazer as vítimas e acompanhá-las durante e após o tratamento médico.

Alguma amiga sua já passou por experiência traumática? Uma pessoa muito próxima foi vítima de violência sexual na minha aldeia. Um dia, eu estava buscando sementes para plantar no meu terreno quando me deparei com ela dentro de um buraco. Depois de a violentarem, cortarem seu clitóris e mamilos, também furaram seus pés para que não pudesse fugir ou buscar ajuda. Somente quando chegamos ao hospital, ela me contou que seu marido também tinha sido estuprado – o que é mais raro de acontecer. Só então ela nos mostrou o caminho para encontrá-lo. Normalmente, a violência é tanta que muitos homens morrem enquanto são violados. A maioria deles não resiste. E, quando sobrevivem, perdem completamente a vontade de viver. Mesmo as mulheres geralmente não gostam quando repetimos que foram vítimas de estupro. É preferível dizer que elas foram “participar das atividades da Coperma”.

Deve ser difícil falar dessas experiências tão duras. Sim, muitas vezes, elas não conseguem falar nada. Quando isso acontece, não podemos forçá-las ou continuar a interrogá-las. Apenas damos a elas uma cama isolada para passar a noite. No dia seguinte, usamos uma técnica para saber se houve algo mais grave com a vítima. Sentamos diante dela, de forma que podemos vê-la de frente, nos olhos. E ela diz tudo com os gestos. Geralmente, uma mulher que foi estuprada não consegue manter os olhos na sua direção. Ela desvia o olhar. Não fala nada, muitas vezes chora. Nesses casos, dizemos a ela para ir descansar no centro de recuperação. É uma maneira discreta de mandá-la para longe dos olhares das pessoas. É importante fazer com que ela acredite que poucas pessoas sabem do seu problema, e que ele permanecerá em segredo. Caso contrário, ela não vai querer ser ajudada.

Quem são os principais responsáveis por essas crueldades? O Exército do governo. Os soldados têm permissão para atuar nas aldeias da forma que querem. Eles apresentam um documento oficial, assinado pelo presidente, que lhes dá autorização para entrar nas casas a qualquer momento, inclusive de madrugada. Vivemos em perigo permanente. Na medida em que o governo aumenta sua presença militar, os grupos armados de países vizinhos ficam mais e mais violentos. Quando estava vindo para o Brasil, por exemplo, precisei passar por Goma, na província de Kivu do Norte. Queria passar a noite ali, mas alguém sussurrou no meu ouvido que era muito perigoso, pois um novo grupo de militares ruandeses havia chegado.

É possível esperar por Justiça nesse contexto? A Justiça só existe para quem tem dinheiro. As autoridades são facilmente compradas, e as eleições, fraudulentas. Onde já se viu um país em que os resultados das votações demoram um mês ou dois para serem divulgados? Me desculpe, mas preciso dizer que nossa governança é terrível. Para a situação começar a mudar, o primeiro passo é trocar de presidente. Mas é muito difícil derrubá-lo. Acho que tem o apoio de países importantes. Joseph Kabila está no poder desde 2001, e não conheço ninguém que votaria nele. Ele não fez absolutamente nada para a população. Nas últimas eleições, no fim de 2011, a gente definitivamente não queria que fosse reeleito. Ele assumiu muito jovem, após o assassinato de seu pai, Laurent-Désiré Kabila. E, apesar de não ter apoio suficiente, faz de tudo para se manter no poder, como nomear os prefeitos com a desculpa de falta de dinheiro para realizar eleições municipais.

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A senhora acredita que a situação possa se agravar a ponto de acontecer um genocídio semelhante ao de Ruanda? Estamos vivendo um genocídio neste momento. Várias organizações independentes já alertaram para isso. A República Democrática do Congo enfrenta um verdadeiro desastre humanitário, e precisamos muito mostrar nossa situação para o mundo todo. Talvez assim alguém nos escute e possa nos ajudar. Mas a solução não está em enviar mais militares. Os capacetes azuis já estão lá, e os problemas continuam. De soldados, já estamos fartos.

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