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A melancolia do Mercosul

Em artigo, ex-ministro das finanças do Chile avalia por que Dilma Rousseff perdeu a chance de liderar um contrapeso moderado ao populismo da região

Por Andrés Velasco
7 ago 2014, 07h39

Quando os líderes do Mercosul se reuniram em Caracas no final de julho, a arrogância habitual do imperialismo encheu o ar. Assim como o inconfundível cheiro de decomposição.

O Mercosul geralmente é descrito como um grupo comercial; na verdade, foi um arranjo político desde o início. O Brasil, a potência regional, sempre é visto como um contrapeso aos Estados Unidos em assuntos do hemisfério. Os governos peronistas na Argentina usam o Mercosul para fazer propaganda sobre integração ao mesmo tempo em que fazem pouco ou nada para remover reais entraves ao comércio. Com a entrada da Venezuela da Hugo Chávez, em 2006, a guinada em direção ao populismo tornou-se inconfundível. Como um ministro do governo chileno no fim da última década, lembro-me da frustração ao participar de reuniões do Mercosul (o Chile é membro associado). Eles são grandes em pose e em intermináveis discursos, mas limitados em acordos importantes sobre qualquer coisa.

Na Cúpula de 2006, em Córdoba, quando Chávez e Fidel Castro duelaram sobre quem poderia fazer o discurso mais longo e mais desconexo, os ânimos ficaram exaltados. A Bolívia, também governada por um populista carismático, estava interessada em desenvolver laços mais próximos. O Equador logo seguiu o mesmo padrão. E um punhado de países menores da América Central e do Caribe caiu na linha política em troca de generosos aportes de dinheiro e petróleo venezuelanos. Naquela época, os líderes do Mercosul poderiam reivindicar a oferta de um “modelo de desenvolvimento alternativo” para a região. Não mais.

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No encontro em Caracas, o clima era fúnebre. O anfitrião, sucessor de Chávez, Nicolás Maduro, enfrenta uma economia em colapso e tensões dentro de seu próprio partido. Apesar dos preços relativamente altos do petróleo, a Venezuela tem um grande déficit fiscal e queda de reservas cambiais. A taxa de inflação é a mais alta da região e a economia está estagnada.

Perante a frustração popular com o agravamento das condições de vida, o governo de Maduro usou de repressão violenta para acabar com os protestos de rua. O líder da oposição Leopoldo López passou meses numa prisão militar antes de ser julgado. Instituições como a Human Rights Watch repetidamente denunciaram violações dos direitos e restrições das liberdades civis por parte do governo.

A presidente da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, chegou a Caracas na esperança de angariar apoio à sua luta contra os chamados fundos abutres que compraram títulos soberanos do seu país de forma barata e tiveram sucesso em seus processos reclamando o pagamento integral. Mas Fernández descobriu que as palavras de incentivo educadas dos seus colegas pouco importavam. A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no mês passado de manter a decisão de um tribunal inferior contra a Argentina a colocou numa situação impraticável: pagar os credores resistentes significaria perder a credibilidade e possivelmente provocar uma onda de processos semelhantes; não pagar significaria inadimplência técnica e todos os seus custos. Ela escolheu a última opção.

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O acesso a capital estrangeiro importa para Fernández porque, como Maduro, ela enfrenta uma economia paralisada e uma crescente escassez de dólar. Medidas de estabilização internas no início deste ano deram-lhe algum tempo, mas o medo de uma recessão permanece. No esforço de recuperar o acesso aos mercados de capitais, sua equipe econômica remendou a situação com os credores soberanos que formam o Clube de Paris e com a Repsol da Espanha (a antiga proprietária da nacionalizada gigante do petróleo YPF). Mas a luta com os abutres jogou o país para trás. Com uma eleição presidencial iminente em outubro de 2015, a maioria dos candidatos potenciais (mesmo aqueles do seu próprio partido) estão se distanciando rapidamente do seu estilo autoritário e legado econômico conturbado.

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Na Bolívia, o presidente Evo Morales tem recorrido a manobras legais e constitucionais para garantir-se por mais um mandato. Depois de dois mandatos, Morales seria teoricamente proibido de concorrer novamente. Mas o Tribunal Constitucional da Bolívia determinou que ele pode, porque a adoção de uma nova Constituição redefiniu o país como Estado Plurinacional da Bolívia; Morales, portanto, ocupou o seu primeiro mandato como chefe de um estado diferente. Quando perguntado por que ele vai concorrer novamente, ele respondeu – em uma confissão peculiar para um líder nacionalista – que a ex-rainha Sofía da Espanha o encorajou a “terminar o trabalho.”

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No Equador, igualmente, as instituições democráticas estão sob cerco. Um relatório independente relatou doze episódios sobre o governo interferindo nas decisões do tribunal. Uma controversa lei da mordaça na imprensa promulgada no ano passado já acabou com a edição impressa em de um grande jornal. De acordo com Catalina Botero, relatora especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, “juntamente com Cuba, o Equador é o país que mais restringe a liberdade de expressão”.

A presidente do Brasil Dilma Rousseff enfrenta uma situação que é ao mesmo tempo semelhante e diferente de seus colegas do Mercosul. O Brasil não é o tipo de país onde um presidente pode manipular a Constituição ou fechar jornais em vão. Mas o mal-estar está no ar em Brasília (deixando de lado a surra na Copa do Mundo dada pela Alemanha).

A rápida recuperação do Brasil a partir da crise financeira de 2008 encantou os mercados financeiros internacionais, mas o fraco crescimento desde então não concretizou a promessa do passado. Apesar de baixo desemprego, a ansiedade econômica está em ascensão – e começa a infiltrar-se na esfera política. Com Dilma Rousseff caindo nas pesquisas e seus adversários lentamente começando a subir, a eleição presidencial de outubro – antes tida como algo fechado – está aí para qualquer um.

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Ausente na Cúpula de Caracas, a presidente do Chile, Michelle Bachelet, culpou um resfriado e uma agenda nacional ocupada por sua impossibilidade de viajar. Complicações políticas ligadas a um possível encontro com a oposição venezuelana, ao qual Bachelet optou por não comparecer (preferindo enviar seu ministro de Relações Exteriores), provavelmente também tiveram influência.

Rousseff e Bachelet eram candidatas naturais para liderar o desenvolvimento de um contrapeso moderado ao populismo de Maduro, Fernández, Morales e Correa. Mas Rousseff, como seu antecessor, o popular Luiz Inácio Lula da Silva, escolheu não cumprir esse papel, e, em vez disso, acolheu a Venezuela. O Chile é muito pequeno para fazê-lo sozinho, e Bachelet está ocupada com cada vez mais controversas reformas tributária, educacional e constitucionais.

O presidente do Uruguai, José Mujica, fez o melhor resumo do que aconteceu em Caracas: “Emitimos uma declaração”. Em outras palavras, o Mercosul continua a ser uma irrelevante conversa fiada – e o surgimento de uma liderança regional de centro-esquerda na América Latina terá que esperar.

Andrés Velasco, ex-ministro das Finanças do Chile, é professor visitante na Universidade de Columbia.

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(Tradução: Roseli Honório)

© Project Syndicate, 2014

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