Sobrinha do ex-presidente Salvador Allende e testemunha do capítulo mais sombrio da história do Chile, a jornalista e escritora Isabel Allende, 77 anos, tem a América Latina como cenário, se não como protagonista, de sua vasta obra literária. Ela saiu do país em 1975, depois de o tio, apunhalado pelo golpe militar de Pinochet, em 1973, ter tirado a própria vida, encurralado no Palácio de La Moneda, e foi morar na Venezuela. As últimas três décadas passou na Califórnia, nos EUA, onde se casou com um americano, sem nunca ter deixado de visitar e observar o Chile e vizinhos, como o Brasil. Ela vem acompanhando “minuto a minuto” a temperatura em Santiago, tomada por manifestações de rua desde outubro de 2019. Autora de língua espanhola mais vendida no mundo, Isabel, que acaba de lançar seu 23º romance, Longa Pétala de Mar (Bertrand Brasil), falou a VEJA por telefone.
Como a senhora avalia a onda de manifestações no Chile? Ninguém poderia prever aquilo. O Chile sempre foi considerado uma ilha de prosperidade na América Latina por seu desenvolvimento econômico e social e suas instituições sólidas. Aí, de repente, a multidão foi para as ruas, em um movimento sem liderança nem organização, como tem ocorrido em vários cantos do mundo. Foram necessárias apenas umas poucas horas para juntar mais de 1 milhão de pessoas. A amplitude da revolta causou enorme surpresa, sobretudo a governantes. É um sinal claro de que algo não vai bem.
O que exatamente não vai bem? O Chile está em situação melhor que a da média dos países da América Latina, e é preciso reconhecer que o período democrático trouxe ajustes importantes ao modelo implantado pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Mas isso coexiste com uma pobreza diluída nas estatísticas e uma alta desigualdade: enquanto 1% dos mais ricos detém 25% da renda nacional, 40% vivem esfolados por dívidas com saúde, educação e moradia.
Houve uma recente consulta popular sobre a elaboração de uma nova Constituição no Chile. Acha que uma revisão da Carta resolve? Isso tem de ser feito mesmo, uma vez que o texto atual é dos tempos da ditadura, mas definitivamente não dá para esperar todo o demorado processo envolvido na feitura de uma nova Constituição para agir. O governo deve começar a se mexer já, tomando medidas que acalmem os ânimos, aplaquem a crise e aliviem o custo de vida elevado.
O presidente Sebastián Piñera entregou bons resultados na economia. Qual foi, afinal, seu pecado? Ele não soube lidar com a tensão que se acumulava na sociedade desde o princípio da redemocratização. E essa falta de visão, tão comum na classe política, está cobrando seu preço de forma radical. Quando a situação explodiu incendiando as ruas, Piñera pôs a culpa nos manifestantes. Sim, houve excessos por parte de quem saiu para protestar, mas o governo, por sua vez, atuou de forma autoritária, respondendo com violência policial. Resultado: a popularidade do presidente despencou para 10%. Agora, cabe ressaltar que a rejeição a Piñera não se explica apenas por questões chilenas. Ela se insere em um fenômeno maior, que se evidencia em outras manifestações vistas em países bastante distintos.
Não é uma simplificação colocar no mesmo balaio realidades tão diferentes quanto as de Chile, Hong Kong e Irã, só para citar alguns exemplos? Pesadas as diferenças, e elas são muitas, na base dos protestos nesses países reside um mesmo abismo entre os anseios de uma geração mais jovem e o olhar de governantes ainda distantes dos grandes desafios do século XXI. Creio que a humanidade vive uma transição sem precedentes. Mas é como um parto doloroso, que, acredito, vai nos levar a um estágio de civilização mais elevado.
“Entrevistei o Neruda em idade já avançada, e ele disse que eu era uma repórter ruim. Sugeriu que trocasse de ofício e virasse escritora, para poder contar as minhas mentiras. Foi uma ótima dica”
O que os governantes estão deixando de enxergar? Percebo em boa parte deles uma ignorância em relação aos usos modernos da tecnologia, que deveria ajudar a conferir transparência à gestão, e à questão do clima, tão cara às novas gerações. Elas entenderam que vão pagar a conta dessa catástrofe que é o aquecimento global, o que vem criando um embate permanente com a política tradicional. Os jovens estão furiosos com seus representantes, a quem culpam também pela falta de habilidade no enfrentamento com as desigualdades e as mazelas sociais. É esse caldeirão de insatisfações que abre espaço para vertentes perigosas, como o populismo. Espero que expoentes talentosos da atual juventude cheguem logo ao poder, aposentando líderes que já deram inúmeras provas de estar ultrapassados.
Após as manifestações no Chile, um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, o deputado Eduardo Bolsonaro, mencionou uma reedição do AI-5, ato que caçou as liberdades individuais no Brasil. O próprio presidente já teceu elogios a Pinochet. Há clima para a volta de ditaduras na América Latina? Sobre Bolsonaro, sei pouco, então prefiro não opinar. Quanto ao retorno aos regimes autoritários, não acredito que aquele período de trevas vá se repetir. Ainda que haja altas doses de violência, desigualdade e corrupção na América Latina, ingredientes notoriamente desfavoráveis à estabilidade, o período dos golpes reuniu condições que não existem mais, como a tensa geopolítica da Guerra Fria. Não creio que um novo impulso autoritário possa prosperar nas democracias da América Latina.
O que sustenta sua convicção? O povo e a própria comunidade internacional estão prontos para rechaçar o surgimento de ditaduras. Um bom antídoto é o engajamento dos jovens, como fazia décadas que não se via. Apesar dos muitos sacolejos, a América Latina claramente passa por uma transformação rumo a dias melhores.
E o que dizer da atual ditadura da Venezuela, que vive seus piores dias? Não há dúvidas de que Hugo Chávez e Nicolás Maduro traíram a democracia, virando as costas para a população em nome de um regime ditatorial. Ainda assim, rejeito a ideia de uma intervenção externa. Os Estados Unidos já fizeram isso, até no Chile, e o resultado foi desastroso. Minha observação de décadas de América Latina me permite dizer que a melhor forma de reconstruir uma nação é a partir de uma transição negociada. Um ditador como Maduro não vai abrir mão do poder facilmente.
Durante a ditadura de Pinochet, a senhora exilou-se por mais de dez anos justamente em Caracas. Como compara a Venezuela de hoje àquela em que viveu? Eu era uma refugiada privilegiada. Deixei um Chile aterrorizado, com a sombra de Pinochet por todos os cantos, e desembarquei em uma Venezuela no extremo oposto: uma ilha de democracia em um continente assolado por ditaduras. Caracas era limpa, segura e cosmopolita. Criei meus filhos com ótima qualidade de vida por lá. Foi um país fundamental para minha formação de escritora. Não poderia ter seguido com o ofício no Chile.
“Chávez e Maduro traíram a democracia, virando as costas para a população em nome de um regime ditatorial. Quando me exilei ali, em 1975, a Venezuela era uma ilha de democracia no continente”
Como era a relação com seu tio, o ex-presidente Salvador Allende, deposto em 1973 pelo golpe de Pinochet? Allende foi a única pessoa do lado paterno da família que ficou perto da minha mãe quando meu pai a abandonou. Eu era muito nova. Tinha um enorme carinho por Allende, que ocupou esse vazio. Adorava contar piadas, era irônico e conseguia rir de si mesmo. Assim o guardei na memória. Lembro-me da última vez que o vi, em um almoço meses antes do golpe militar. Ele dizia que o povo chileno o havia escolhido, que não ia ceder. Sua morte mudou minha vida. Só quando me exilei na Venezuela, dois anos depois, tive a dimensão do que seu desaparecimento representou para o Chile.
Por que nunca mais voltou a viver em seu país? Durante a era Pinochet, se eu ficasse no Chile correria alto risco, algo que demorei uns dois anos para entender. Aí fiquei esperando o fim da ditadura em Caracas. Quando ela finalmente terminou, minha vida já tinha mudado de rumo. Conheci um americano com quem me casei e acabei me enraizando na Califórnia. Mas jamais me desliguei do Chile, que visito e acompanho minuto a minuto.
Que tal a vida nos Estados Unidos? Honestamente, adoro. Admiro a consciência. o otimismo e o engajamento dos jovens daqui. A Constituição americana é uma obra primorosa, que garante o direito de todos à busca pelo objetivo maior, a felicidade. Confesso, porém, que mesmo depois de todo esse tempo nunca deixei de me sentir uma imigrante latina. A começar pelo meu inglês, que é diferente.
O governo de Donald Trump vem fechando o cerco aos imigrantes. Isso a atinge em algum grau? Não diretamente, mas, por meio da fundação de ajuda a mulheres imigrantes que mantenho, escuto histórias horripilantes de gente que tenta cruzar a fronteira com o México. Assusta-me as vias do populismo e das medidas espetaculares nas quais tantos governantes apostam para equacionar o problema da imigração, como faz Trump ao achar que um muro resolverá um nó tão difícil de desatar. O drama dos refugiados é, a meu ver, o tema mais urgente do século XXI, e vai se agravar.
Em seu novo livro, a senhora presta homenagem ao poeta Pablo Neruda (1904-1973). Chegou a conhecê-lo pessoalmente? Conheci. Como jornalista, fui entrevistá-lo quando ele já tinha idade avançada. Neruda disse que eu era uma repórter ruim. Sugeriu que eu mudasse de ofício e virasse escritora para poder contar minhas mentiras. Foi uma ótima dica.
Em 2018, o movimento feminista criticou a ideia de batizar um aeroporto com o nome de Neruda, a quem acusavam de estupro e de ter abandonado a própria filha. A senhora endossa o coro? Penso que os erros de Neruda podem e devem ser condenados. Mas não nos cabe apagar seu legado. E isso não se aplica só a ele. Cientistas, políticos e historiadores cometem erros na vida privada. Se você for rejeitar por completo a obra dessas pessoas, o que sobra? Afinal, quem teve uma vida perfeita?
Publicado em VEJA de 8 de janeiro de 2020, edição nº 2668