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A História contra a Europa

No centenário da eclosão da Primeira Guerra, questões como a da Síria poderiam ser estopim para um novo conflito

Por Harold James
5 fev 2014, 06h45

A História influi, mas de diferentes maneiras. Em alguns lugares e para algumas pessoas, a História significa eternos confrontos que são moldados por forças geopolíticas profundas: o que ocorreu há quatro séculos pode representar o mesmo que ontem. Em outros lugares e para outras pessoas, a História sugere uma necessidade de encontrar maneiras de escapar de situações antigas e complexas e preconceitos ultrapassados. É essa diferença que define a batalha intelectual que ocorre atualmente ao redor da Europa.

Com o centenário da eclosão da Primeira Guerra Mundial, este ano, dezenas de novas análises da “guerra para terminar todas as guerras” surgiram na imprensa. E é tentador ver paralelos contemporâneos na complacência imperial da Europa, particularmente na firme convicção de que o mundo seria tão interligado e próspero que qualquer inversão seria impensável. Hoje, apesar dos supostos efeitos civilizadores de cadeias globais de abastecimento, as tensões na Síria ou no mar da China Meridional poderiam explodir o mundo – assim como ocorreu no conflito na Bósnia, em 1914.

Refletir sobre o legado da Grande Guerra é também uma ocasião de reviver a mentalidade da época. No Reino Unido, o secretário da Educação, Michael Gove, recentemente levantou um forte debate político, posicionando-se contra os historiadores que enfatizam a futilidade da guerra, chamando-a de uma “guerra justa” contra o “implacável darwinismo social das elites alemãs.” Isto parece ser uma alusão velada às lutas de poder da Europa contemporânea.

Mas o ano de 1914 não é o único, nem o mais atraente ponto de comparação para interpretar o passado da Grã-Bretanha. O ano de 2015 será o bicentenário da Batalha de Waterloo e da derrota final de Napoleão. O político de direita britânico Enoch Powell costumava afirmar que o mercado comum europeu é a vingança que os alemães e os franceses impuseram à Grã-Bretanha pelas derrotas que o bloco de países lhes infligiu.

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As celebrações e comemorações estarão cheias de simbolismo relacionado aos conflitos contemporâneos. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, já teve de deslocar uma reunião de cúpula com o presidente francês François Hollande do Palácio de Blenheim, local proposto inicialmente, porque diplomatas franceses perceberam que o edifício havia sido construído para homenagear John Churchill, o Duque de Marlborough, que esmagou as forças de Luís XIV em 1704, perto da pequena cidade da Baviera que deu o nome ao palácio.

O ano de 1704 é repleto de significado. A vitória sobre a França estabeleceu as bases para o Tratado de União de 1707 entre Inglaterra e Escócia. Essa união é objeto de um referendo importante que será realizado este ano em território escocês.

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Datas históricas alusivas estão sendo usadas ostensivamente, de forma semelhante, em outro extremo do continente europeu, para invocar imagens de inimigos que repercutem em debates políticos contemporâneos.

Há alguns anos, um filme russo, simplesmente intitulado “1612”, evocou a era das trevas na Rússia, quando a enfraquecida liderança levou o país a ser invadido e subvertido por astuciosos empresários e aristocratas poloneses.

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O diretor do filme, Vladimir Khotinenko, disse que foi importante que seu público “não tenha considerado o filme como algo que aconteceu na História Antiga, mas como um evento recente; que tenha sentido a ligação entre o ocorrido há 400 anos e hoje.”

Enquanto a Rússia luta para trazer a Ucrânia de volta à sua órbita, outra data antiga se agiganta: 1709, quando o csar Pedro, o Grande, esmagou os exércitos sueco e cossaco na Batalha de Poltava. As margens da Europa ocidental e oriental são obcecadas por datas que lembram suas lutas: 1914, 1815, 1709, 1707, 1704 e 1612, entre outras. Por outro lado, o núcleo do continente europeu é obcecado por transcender a História, operando os mecanismos institucionais para superar os conflitos que marcaram a Europa na primeira metade do século XX. O projeto de integração europeu é uma espécie de libertação das pressões e restrições do passado.

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Após a Segunda Guerra Mundial, Charles de Gaulle desenvolveu uma metafísica complicada para explicar o relacionamento do seu país com seu passado problemático. Todos os países europeus foram traídos. “A França sofreu mais que os outros porque foi traída mais que os outros. É por isso que a França é que deve perdoar… Somente eu posso conciliar a França e a Alemanha, porque somente eu posso tirar a Alemanha da sua decadência”.

Winston Churchill (um descendente direto do Duque de Marlborough), no pós-guerra, tinha uma visão similar para superar as divisões e contendas nacionalistas. “Este continente nobre (…) é a fonte da fé cristã e a ética cristã”, afirmou. “Se a Europa se unisse na partilha do seu patrimônio comum, não haveria limite à felicidade, à prosperidade e à glória dos seus trezentos ou quatrocentos milhões de habitantes.”

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Hoje, o Centro Europeu é muito ingênuo ou muito idealista? É mesmo possível escapar da História? Ou, ao contrário, há algo estranho na maneira como as margens europeias obsessivamente recorrem aos marcos históricos? Na Grã-Bretanha e na Rússia essa obsessão parece não ser apenas uma maneira de defender os interesses nacionais, mas também um mecanismo para apelar a uma população desencantada com a realidade contemporânea do declínio do passado imperial.

De Gaulle e Churchill sabiam muito sobre a guerra, e queriam transcender o legado sangrento de Poltava, Blenheim e Waterloo. Viam a História como garantia de lições concretas sobre a necessidade de escapar do passado. Hoje, as margens da Europa, por outro lado, parecem determinadas a escapar para o passado.

(Tradução: Roseli Honório)

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Harold James é professor de História na Universidade de Princeton e pesquisador sênior do Centro para Inovação em Governança Internacional

© Project Syndicate, 2014

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