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Aquecimento global afeta a produção de vinhos e espumantes famosos

Novas conclusões em torno do fenômeno têm deixado os principais produtores do mundo em polvorosa

Por Alexandre Senechal Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 1 nov 2019, 10h42 - Publicado em 1 nov 2019, 06h00

Toda boa garrafa de espumante é como uma aula magna de ciências. As versões produzidas na trilha do “método tradicional”, consagrado pelos exemplares da região de Champagne, na França, passam por dois processos de fermentação. O primeiro, como em qualquer produto à base de uvas, transforma o açúcar natural da fruta em álcool. O segundo acontece depois da rolha posta: as leveduras continuam a reagir, inexoravelmente, mas todo o gás carbônico gerado fica retido, atalho para conceder à bebida preferida das celebrações sua característica frisante, um carinho ao palato.

A metáfora das lições científicas deixou de ser figura de linguagem. As novas conclusões em torno do aquecimento global têm deixado os principais produtores do mundo em polvorosa — e agora, mais do que nunca, intimamente ligados aos aspectos bioquímicos de seu ofício. Os franceses, sobretudo, transformaram em obsessão a permanente busca por soluções que atenuem os severos estragos ao solo, em virtude de temperaturas e chuvas irregulares. O terroir, abrigo das videiras mais celebradas, é agora um laboratório de pesquisas. Tudo em nome da boa gastronomia.

Em 2019, registrou-se a temperatura mais alta da história da região de Champagne: 42,9 graus. O acompanhamento histórico aponta a elevação média de 1,1 grau desde 1990. A mudança pode parecer sutil, mas tem provocado impacto direto na qualidade dos espumantes. “Percebemos que as cores e os aromas estavam bem menos avançados do que em um ano normal, de temperaturas mais amenas”, afirma o francês Vincent Chaperon, chef de cave da Dom Pérignon. O calor em excesso faz com que as uvas amadureçam antes do esperado. Além de levarem a um aumento indesejado em sua gradação alcoólica — quanto mais madura, mais açúcar a uva produz e mais alcoólica se torna —, as alterações podem modificar para sempre as propriedades que fazem os vinhos de Champagne mundialmente famosos. “É como mudar a voz de um cantor de quem você gosta”, compara Manoel Beato, chef sommelier do restaurante Fasano, de São Paulo. Atento a esse tipo de reviravolta, um dos membros do comitê multidisciplinar que controla a qualidade dos espumantes da região francesa, o CIVC, órgão mais influente que as prefeituras, disse no mês passado que, caso a temperatura média suba mais 1 grau, o champanhe como o conhecemos “deixará de existir”, dramaticamente.

Se as consequências das mudanças climáticas travam a boca dos produtores mais tradicionais, elas acabaram por beneficiar regiões do mundo onde nunca se sonhou produzir vinhos de qualidade. A Inglaterra, por exemplo, antes considerada uma terra inóspita — o frio em excesso impede o ciclo apropriado de maturação das uvas —, tem registrado condições meteorológicas mais amenas. Tanto que a área dedicada à plantação de uvas para a produção de espumantes triplicou de tamanho desde 2010. A vinícola Nyetimber, em West Sussex, no sul da ilha, foi além e investiu em plantações do mesmo tipo de uva usado pelos produtores de Champagne.

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Um gaulês irredutível prefere a morte a transferir um de seus patrimônios mais valiosos para o outro lado do Canal da Mancha. Non! Por essa razão há tanto nervosismo e agitação na França. Desde 2016, o CIVC investe em um programa chamado Inovação Varietal, que busca o cruzamento ideal entre as tradicionais uvas utilizadas na preparação do champanhe (geralmente chardonnay, pinot noir e pinot meunier) e outros tipos, sabidamente mais resistentes ao calor e a pragas decorrentes do caos climático.

A medida é controversa: há quem assegure que a criação de híbridos entre uvas tipicamente francesas e plantas de outras regiões provocará mudanças no sabor e no aroma da bebida. Mas esse é um caminho sem volta. Não se adaptar significa, na prática, correr o risco de ver sua produtividade cair drasticamente, um atalho para a morte. “A Europa tem experimentado uma onda de calor que desafia a viticultura do continente, atingindo a tipicidade dos vinhos, algo fundamental para os produtores da região”, diz Mauro Zanus, engenheiro-agrônomo e pesquisador em enologia da Embrapa Uva e Vinho, uma unidade descentralizada de pesquisa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.

Até agora o Brasil não colheu os frutos das mudanças climáticas. Tampouco teve prejuízos. “O aquecimento global ainda não nos afetou”, afirma Daniel Dalla Valle, enólogo da Casa Valduga, uma das principais produtoras de vinho na cidade de Bento Gonçalves, no interior do Rio Grande do Sul, e de onde saem espumantes premiados internacionalmente. “Há trinta anos, a viticultura brasileira era primária. Nosso avanço se deu pela mudança no estilo de produção, agora mais qualitativa”, diz. Mesmo em regiões de calor extremo, como os estados do Nordeste, o país já é capaz de produzir diferentes tipos de vinho e espumante. Existem vinícolas especializadas em brancos, tintos e borbulhantes adaptados ao clima quente de Pernambuco e da Bahia. “A indústria brasileira já tem tecnologia para fazer vinhos e espumantes de qualidade e de forma constante. Se houver uma situação de mudança climática acentuada, pode-se dizer que estaremos em uma posição à frente dos demais produtores do mundo”, afirma Mauro Zanus. A pesquisa científica terá, portanto, papel fundamental na manutenção da qualidade da bebida. Em tempos tão interessantes, até o prazer exige conhecimento.

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(./.)

Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659

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