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O legado de Mandela entrou em campo

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 11 jun 2010, 21h49

Diz-se, na África do Sul, existir um fenômeno conhecido como “Madiba Magic”. É a mágica de Nelson Mandela. Madiba é o apelido do homem que derrubou o apartheid, homenagem ao clã de onde vieram seus ancestrais. Aos 92 anos, frágil, raramente exposto publicamente, ele tinha planos de ir ao estádio Soccer City, em Johannesburgo, para assistir à partida inaugural, que terminaria com um empate em 1 a 1 entre a África do Sul e o México. Uma tragédia particular o impediu de sair de casa. Na madrugada anterior, logo depois do show que celebrava a inauguração da festa, sua bisneta, Zenani, de 13 anos, morreu num acidente de carro. E a 19ª Copa do Mundo começou sem ele. “O espírito de Mandela está presente no estádio”, disse o presidente da Fifa, Joseph Blatter, ao abrir o torneio. Depois, foi só barulho, mesmo quando os mexicanos marcaram. Mas na tarde de 11 de junho de 2010, nada fez mais estrondo que a ruidosa ausência de Mandela – o homem que habituou-se a entrar para a história sucessivas vezes, e voltou a fazê-lo por permitir que futebol e as cicatrizes de um país dessem as mãos.

A mágica de Madiba – incapaz de salvar a vida da bisneta e de dois de seus filhos, também mortos tragicamente, um no trânsito, outro de aids – derrubou a estupidez do apartheid com sua libertação, em 1990, e depois com sua eleição a presidente, em 1994. No ano seguinte, ele transformaria a Copa do Mundo de rúgbi, o esporte dos brancos, dos africâneres, em um ato de reconciliação nacional. Na contramão de seus companheiros do Congresso Nacional Africano, ávidos por vingança, vestiu camisa e boné verdes dos Springboks, a seleção da bola oval. A história foi contada no filme Invictus, dirigido por Clint Eastwood. Desenhava-se, ali, o início de uma distensão que atravessaria duas décadas, e ainda continua. A presença de Mandela no Soccer City, na abertura do Mundial, tem significado distinto daquele transformado em cinema: é o corolário de um capítulo, a de um país justamente execrado mundialmente que, apenas vinte anos depois do fim do racismo de estado, consegue organizar o evento esportivo mais popular do planeta.

Elefantes brancos – A Copa da Alemanha, em 2006, foi a celebração de um povo que pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra e do nazismo teve coragem de sair às ruas, bandeiras em punho, sem constrangimento. A da África do Sul celebra, com algum atraso, a derrubada de seu muro de Berlim particular, o da sociedade rachada entre brancos e negros. Infelizmente, depois da Copa, a vida voltará ao normal, com toda sua anormalidade – estádios transformados em elefantes brancos, o desemprego a taxas absurdas de quase 40% e um fosso social no qual os negros continuam no andar de baixo, apesar de uma crescente classe média que antes inexistia. O fim da desigualdade é outra mágica que Mandela foi incapaz de apresentar. No Randpark Golf Club, onde o Brasil está concentrado, em Johannesburgo, brancos batem com tacos nas bolinhas e negros levam os sacos, embora exista educação e respeito que antes autorizava-se oficialmente, por decreto, não ter.

“Tenta-se vender uma Copa da Mundo africana, a de um continente unido em torno do futebol, e a de um África do Sul moderna, tecnologicamente avançada e democrática”, disse a VEJA o historiador Peter Alegi, da Universidade KwaZulu-Natal, atualmente lotado na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. “Não é nem uma coisa, nem outra, é acima de tudo um torneio da Fifa, a Fifa World Cup, um evento corporativo”. Para Alegi, “africanizar” a Copa, como se pretende – e o cartaz oficial com a silhueta de um jogador a compor o mapa do continente é prova dessa intenção – naufragará na escassa venda de bilhetes para países vizinhos (apenas 41.000) e na xenofobia sul-africana, processo que caminha junto com o desemprego.

Crianças treinam rúgbi na escola Leratong O zagueirão Jacob Zuma – Convém, portanto, entender a Copa – para além do que ocorrerá nos gramados – como o ápice de uma fascinante transformação, e não como solução para os problemas de amanhã. Cabe insistir: talvez seja apenas o fim, e não o começo de um processo. É constatação que não impede enxergar com carinho, e fascínio, algo muito específico da África do Sul – o modo como o futebol acompanhou a história do país desde a imposição do apartheid, em 1948, e como os negros fizeram dele um instrumento de resistência. De 1964 a 1967, os presos de Robben Island – ilha à margem da Cidade do Cabo, tristemente conhecida por ter sido cárcere de Mandela em 18 de seus 27 anos atrás das grades – fizeram insistentes reuniões com seus carcereiros com um pedido: jogar futebol. Tanto incomodaram que conseguiram. Fundaram uma associação, a Makana – do nome de um guerreiro-profeta da etnia xhosa, a mesma de Mandela, que no início do século XIX fez guerra aos colonos britânicos. Makana foi detido e levado a Robben Island, onde morreria.

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A liga tinha três divisões, separadas pelas qualidades dos jogadores. Havia uniformes, emblemas e gritos de guerra. Os regulamentos eram os mesmos da Fifa. No campeonato, os craques tinham direito a transferência de clube. “Não havia sentido prendê-los a um escudo quando a nossa luta pelo direito à bola era uma luta pela liberdade”, afirma Lizo Sitoto, membro do Congresso Nacional Africano, preso de número 369/64 – ou o 369º condenado do ano de 1964. Mandela, que não tinha direito a assistir os jogos, era o 466/64. Jacob Zuma, o atual presidente da África do Sul, era um dedicado zagueirão. “O futebol de Robben Island, que exigia disciplina, lealdade e senso de organização, forjou os líderes da luta anti-apartheid para o momento em que deixaram a prisão”, diz Sedick Isaacs, sabotador do regime racista transformado em goleiro na prisão. “O ciclo semanal de partidas, da análise depois dos jogos, e da antecipação do que viria depois, ajudava a fazer o tempo passar mais rápido”. Um pouco como, na vida livre, ocorre com o cronômetro que mede os quatro anos que passam de uma Copa a outra. A Makana existiu até 1987. Morreu porque muitos dos detentos começaram a ser liberados, e com a agonia do apartheid se aproximando, não havia motivos para mantê-la acesa.

Enquanto existiu, serviu de inspiração para quem estava do lado de fora. “A luta do futebol negro por igualdade e autonomia em relação aos brancos é espinha dorsal da história do esporte e da política sul-africana”, diz o historiador Alegi. Convém lembrar, contudo, que as autoridades sul-africanas autorizavam o crescimento da federação de futebol dos negros – em oposição à outra, alva – porque acreditava ser uma válvula de escape social. Perderam o controle, porque até mesmo os brancos começaram a se interessar pela bola redonda. “O futebol foi introduzido na África pela Coroa Britânica como se fosse a chegada da civilização aos selvagens”, afirma Alegi. “Com o tempo, o jogo virou”.

Joseph 'Banks' Sethlodi Joseph “Banks” Sethlodi – E o futebol virou política, tradução de um anseio popular – embora, é natural, como reflexo da sociedade, houvesse também entre as agremiações negras escândalos, jogos arranjados, cartolagem do pior nível, ela que decididamente não escolhe cor de pele. O esporte de Pelé – antes até que o Congresso Nacional Africano e a inteligência de Mandela – conseguiu furar alguns bloqueios impostos pelo apartheid. Em 1975, no auge do regime, deu-se uma partida hoje historicamente fundamental. Enfrentaram-se o Hellenic da Cidade do Cabo (brancos) e o Kaizer Chiefs (negros) pelo troféu da Copa dos Campeões Chevrolet. Era a primeira vez que disputavam um torneio, até então as ligas não se misturavam. O Hellenic ganhou o jogo inicial por 3 a 1. Na volta, em Johannesburgo, perdeu por 2 a 1 mas ficou com o título. Houve muita festa em Soweto apesar da derrota na soma das partidas, em decorrência do saldo de gols. “Fomos celebrados como heróis”, diz Joseph “Banks” Sethlodi, goleiro do Kaizer Chiefs, como antecipa o apelido, hoje um dos “lendários” do clube, que naquele mesmo ano contrataria Jairzinho, o furacão da Copa de 1970. “Tenho o orgulho de dizer que a Copa do Mundo de 2010 pode ter nascido lá atrás, com equipes como a nossa, de um tempo em que éramos considerados seres inferiores”, diz Banks-Sethlodi, firme e forte em seus 65 anos. “Fomos pioneiros”.

O futebol rebelde de Robben Island e o redentor, da turma de Sethlodi, foram a gênese da ideia da África do Sul como sede da Copa – há evidentemente interesses econômicos da Fifa; a escolha se deu também como pagamento de conta pelos votos que, ao longo de décadas, os africanos deram ao brasileiro João Havelange, o homem que fez a Copa gigante e, em seguida, a Blatter. São verdades incontornáveis, mas elas não escondem uma outra: o nascimento de uma nação que, apesar de todos os problemas, apesar de um a cada cinco habitantes ter o vírus da aids, apesar da criminalidade, pode dizer que saiu das trevas do apartheid com a ajuda – pequena mas fundamental, por alegre – do futebol. Os corajosos de ontem, liderados por Mandela na cadeia, no apoio aos Springboks e agora no Soccer City, é que permitem o despertar de cenas antes inimagináveis. Dias antes da abertura da Copa, crianças negras de 12 e 13 anos da escola Leratong (“lugar do amor”, em zulu), de Soweto, aguardavam num campo aberto o treinador de rúgbi (assista ao vídeo abaixo). Jogavam com uma bola de futebol, feita de meia, como nos campinhos de terra do Brasil, e não com a oval. Ao redor, como aconteceu durante toda a semana que antecedeu o início da festa, negros e brancos vuvuzelavam. A lista de improváveis situações marca o novo país, problemático, sem dúvida, mas novíssimo quando se olha o passado recente: negros que jogam rúgbi, brancos que celebram a África do Sul sem barreiras raciais. O legado de Mandela entrou em campo.

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Assista ao vídeo com as crianças da escola Leratong

Para saber mais:

More Than Just a Game – Football vs. Apartheid: The Most Important Football Story Ever Told, de Chuck Korr e Marvin Close (em inglês)

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