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O dia em que Muhammad Ali “inventou” o MMA

Em 1976, o maior pugilista de todos os tempos decidiu enfrentar o astro japonês da luta livre no que seria considerado o primeiro grande embate.

Por Alexandre Salvador Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 18 mar 2021, 21h30 - Publicado em 12 jun 2016, 11h45

Que o impacto da passagem de Muhammad Ali transcende o universo do boxe, isso é sabido e foi dito a exaustão na última semana. Agora, aquilo que poucos sabem é que essa definição pode ser estendida também ao que tange as artes marciais mistas, o chamado MMA. Se ainda estivesse entre nós, o maior de todos os pugilistas poderia gabar-se e dizer que foi graças a uma de suas lutas que o embate entre diferentes modalidades de luta ganhou maiores proporções. Pelo menos é o que afirma seu adversário neste confronto entre estilos.

O japonês Antonio Inoki, hoje um senador em seu país, foi um dos maiores nomes da luta livre mundial na década de 70. Na adolescência, Antonio chegou a trabalhar nas lavouras de café e amendoim do Brasil, mas voltou ao Japão para se consagrar como lutador. Inoki enfrentou Ali em uma contenda de 15 assaltos disputada em Tóquio no dia 26 de junho de 1976. Naquela época pré-UFC, o confronto de estilos distintos de luta era uma mera fantasia de aficcionados. Mas a disputa ganhou seriedade depois que o wrestler japonês se voluntariou a aceitar o desafio proposto pelo boxeador americano. Muhammad Ali havia bradado um ano antes que daria 1 milhão de dólares a qualquer lutador asiático que conseguisse vencê-lo. No país do judô e do jiu-jitsu, coube a Antonio tirar a prova.

Em VEJA: O século de Ali

Mas a verdade é que praticamente não houve luta. O que se viu nos 15 rounds foi um Ali provocador ser sapateado por Inoki, que lutou praticamente todo o tempo deitado no ringue, com as pernas erguidas e que desferiam repetidos coices nas pernas do americano. Após o confronto, os expectadores mais frustrados começaram a dizer que a luta foi armada (Ali recebeu 6 milhões de dólares para subir ao ringue, Inoki a metade desse valor), mas isso não é algo que incomoda o japonês. “Passados 40 anos desde então, hoje o mundo nos valoriza com a mais alta admiração por esta luta épica, a maior luta do mundo das artes marciais, e a única palavra que expressa meu sentimento pela oportunidade da luta é gratidão”, disse Inoki a VEJA em entrevista exclusiva.

Na semana em que o mundo prestou suas homenagens a Muhammad Ali, o mais improvável adversário da carreira do pugilista deixou uma mensagem repleta de carinho e respeito a um dos mais influentes atletas do século XX. “Não quero dedicar a ele palavras de uso comum, mas quero desejar de coração que descanse em paz. Se um dia nos encontrarmos lá do outro lado, gostaria de dizer a ele: “E aí, vamos juntos de novo surpreender o mundo com um big evento?”

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Leia abaixo a íntegra da entrevista com o senador Antonio Inoki por e-mail, gentilmente traduzida pela sobrinha do ex-lutador, Cristina Izumi Sagara:

Como surgiu a ideia para a luta? Em 1975, soube que Ali havia feito a seguinte declaração: “Não há japonês algum que me desafie!” Então, declarei: ¨Se é assim, eu o farei!¨, aceitando o desafio. Foi essa a deixa para que, um ano depois, se concretizasse o que muitos chamaram de A Luta Milagrosa Concretizada por Força Divina.

O senhor não teve receio de enfrentar a grande lenda do esporte? É um combate, ou seja, o medo é um sentimento natural. Principalmente porque seria um embate entre luta livre e boxe, modalidades diferentes de artes marciais. Repito, modalidades di-fe-ren-tes. Para mim, isso significava um universo totalmente diferente e novo.

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Durante a apresentação da luta, Ali falou muito, te provocou a todo instante. Algo costumeiro para ele. Impressionou a personalidade do campeão? Na cerimônia de assinatura, Ali fez sua típica performance estratégica de tentar reprimir o adversário. Desde a primeira coletiva de imprensa em Nova York, Ali foi bastante provocador.

A estratégia de enfrentar Ali o tempo todo deitado no chão ringue foi algo pensado com antecedência? O senhor não cogitou a possiblidade de vestir luvas e enfrenta-lo como um boxeador? Era um atleta de luta livre e não de boxe, portanto, se eu o confrontasse no corpo a corpo, não conseguiria reagir ao soco rápido e ágil de Ali. Assim, minha idéia era atacar as pernas do adversário para então dominá-lo com técnica de luta de solo e imobilizá-lo.

O senhor castigou bastante as pernas de Ali, mas seu adversário só conseguiu acertar dois socos. Deu para sentir o peso da mão de Ali? Incrivelmente, não me recordo de ter levado famoso soco de Ali. Talvez tenha sido porque seu punho era mesmo muito rápido. Só me lembro de ter percebido um galo na cabeça depois de terminada a luta. “Ah, não é que ele me acertou?”, pensei. Após nossa luta, Ali foi internado com trombose. Acredito que meus chutes acabaram lhe causando graves danos nas pernas.

Ao final da luta, declarado o empate, o senhor ficou frustrado com o desfecho do combate? Foram 15 rounds que se sucederam como num piscar de olhos. Quanto ao desfecho, fiquei frustrado sim. Sabia que tinha causado muito mais danos nele do que ele a mim. Passado o tempo, porém, penso que foi bom o resultado de empate.

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Quem levaria a melhor: o senhor como boxeador ou Ali como wrestler? Não saberia responder, deixo para sua imaginação.

O que Ali falou ao seu ouvido ao final do combate? Eu já não me lembrava mais, porém estes dias, num programa de TV japonês, pude rever a cena e me lembrar o que ele me disse 40 anos atrás: “Thank you!”, disse ele.

O senhor considera a luta de 1976 como precursora do que hoje conhecemos como o MMA (as artes marciais mistas), sendo o campeonato mais famoso o UFC? Muitos comentam dessa forma, talvez tenha sido mesmo.

Pelo desfecho da luta, há quem diga que foi armação. O que você diria para essas pessoas que desconfiam do resultado? Houve falha de comunicação. As regras estabelecidas para aquela luta não foram apresentadas nem ao público presente, nem à mídia com antecedência. Creio que foi este detalhe que deu espaço à interpretações equivocadas. Passados 40 anos desde então, hoje o mundo nos valoriza com a mais alta admiração por esta luta épica, a maior luta do mundo das artes marciais, e a única palavra que expressa meu sentimento pela oportunidade da luta é gratidão.

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O senhor ganhou muito dinheiro com esse combate? A luta foi transmitida ao vivo via satélite em circuitos fechados de cinemas nos EUA e Europa, talvez tenha obtido algum lucro com isso.

Perdoe-me pela indiscrição, mas posso perguntar quanto? Ali recebeu 6,1 milhões de dólares e eu 3 milhões de dólares.

Após a luta, vocês se encontraram novamente? Sim, nos encontramos várias vezes. No ano seguinte à nossa luta, fui convidado para seu casamento. Em 1995, organizei um evento esportivo na Coreia do Norte, e Ali veio nos prestigiar como nosso convidado de honra. Naquela época, Ali já estava com dificuldades de andar sozinho devido ao avançado estágio da doença de Parkinson e estávamos preocupados, mas sob os flashes da mídia e ovacionado pelo gigantesco público (380 000 pessoas em dois dias de evento) parecia que sua consciência de astro tinha sido despertada. Passou os dias em Pyongyang muito mais bem disposto do que chegou. No ano seguinte, Ali pode participar da maratona da tocha olímpica de Atlanta e acredito que sua participação no Festival de Pyongyang no ano anterior, trouxe de volta o Ali Superstar.

Qual foi a última vez que o senhor o viu pessoalmente? Ele foi meu convidado especial em abril de 1998, em Tóquio, para ocasião da minha última luta. Acho que logo depois, nos encontramos no Convention Center de Colorado.

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Na sua opinião, Ali foi o maior lutador de todos os tempos? Ali não foi um mero lutador, sua vida toda foi destinada a carregar a sociedade sobre seus os ombros. Não se limitou ao mundo do boxe ou do esporte. De corpo e alma Ali conseguiu transmitir às novas gerações como deve ser e viver o ser humano.

Ele foi único nesse sentido? Existem muitos atletas lutadores, mas são raros aqueles que encaram a sociedade e lutam por ela. Há aqueles que carregam seu país nas Olimpíadas, mas poucos lutam pelas causas do país. Em 1990, quando houve a Guerra no Golfo, voei para o Iraque de Saddam Hussein e consegui negociar a libertação de todos os prisioneiros japoneses e também de outras nacionaliades. Neste sentido, posso dizer que consigo compreender Ali e sua destinação de lutar pela sociedade.

O senhor morou alguns anos no Brasil. Como foi essa experiência? Naquela época, imigrar ao Brasil era algo que despertava os sonhos das pessoas no Japão. Eu imigrei a Brasil aos 14 anos e retornei ao Japão com 17 anos. Chegando ao Brasil, fui trabalhar como agricultor nas fazendas de cultivo de café e amendoim. Posso dizer que foi neste período que meu corpo se desenvolveu forte e robusto e meu espírito se tornou mais firme, o que foi de extrema utilidade para meu futuro como lutador.

E quando foi que a luta tornou-se profissão? Aos 17 anos, fui descoberto pelo mestre Rikidouzan (famoso wrestler japonês), que estava em turnê de apresentação de Luta Livre no Brasil e essa foi a razão de eu ter retornado ao Japão. Acredito que o encontro com Rikidouzan não foi mero acaso.

Qual foi o maior lutador brasileiro que o senhor viu em ação?

Posso dizer que um grande lutador foi Ismail Walid, do vale-tudo e que veio a ser meu discípulo. Mas se levarmos em conta a amplitude e visibilidade a que foi levado o Jiu-Jitsu, não poderia deixar de citar a Família Gracie.

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