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Maracanã, um colosso improvisado

Em ritmo de “vai da valsa”, como dizia uma gíria da época, o maior estádio do mundo foi erguido em 22 meses. E não estava pronto quando a Copa começou

Por Sérgio Rodrigues
30 jul 2011, 01h25

O estádio Municipal do Rio, apelidado pela imprensa ufanista de “colosso do Derby”, mal começava a herdar da avenida onde se erguia o nome de Maracanã quando foi inaugurado pelo presidente Eurico Dutra, no dia 16 de junho de 1950. Havia andaimes de pé, grades por fixar, montes de cimento e brita pelos cantos. A equipe de 1.500 operários que tinham trabalhado na obra nos últimos 22 meses, reforçada por outro tanto na reta final, ainda virou noites até a primeira partida da Copa do Mundo, oito dias depois, quando uma multidão de 200.000 pessoas superlotou um estádio projetado para 155.000 e viu o Brasil golear o México por 4 a 0. Nem assim deu tempo. Na estreia ainda havia muito por fazer – os retoques que dariam forma definitiva ao projeto original só aconteceram na década de 60, mais ou menos na época em que Pelé marcou contra o Fluminense seu famoso “gol de placa” -, mas, para espanto de muita gente, o Maracanã não caiu.

A imprensa não deu muita bola para o que havia de inacabado no estádio. O que estava pronto chamava mais atenção, num festival de números vertiginosos: gastos de 200 milhões de cruzeiros, 195.600 metros quadrados de área, 10.500 toneladas de ferro, 193.000 quilos de pregos, 993.000 tijolos, noventa estandes de venda de cigarros, 58 bares, 45 bonbonnières, cinquenta “cadeiras de deputados”. Pouco mais de um ano e meio antes, nem uma estaca se erguia no terreno alagadiço pisado por tantas patas de cavalo do velho Derby Club, que o Jockey Club, seu proprietário, cedera à prefeitura em troca de lotes à margem da lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul carioca. O estádio de dimensões “ciclópicas” – adjetivo caro ao parnasiano jornalismo da época, que chamava os jogadores da seleção de “scratchmen” – foi saudado como “uma prova da capacidade realizadora do brasileiro”, nas palavras do Jornal dos Sports, que acertou ao prever que ele se tornaria um novo “cartão de visita” da cidade, ao lado do Pão de Açúcar e do Corcovado. Foi menos feliz, porém, ao vaticinar uma glória inédita: “e neste estádio haveremos de ser campeões do mundo!”. Até então, o Rio de Janeiro tinha no estádio de São Januário, construído em 1927 para 40 000 pessoas, um exemplo de grandiosidade. Os 60.000 lugares do Pacaembu, inaugurado em São Paulo em 1940, ainda faziam cair queixos. Erguer em prazo recorde o maior estádio do mundo, onde caberiam três Pacaembus, tinha valido ao prefeito biônico Mendes de Morais a fama de maluco Como ele mesmo lembraria anos depois, entre os céticos diante da empreitada estavam o próprio presidente da Fifa, Jules Rimet, e o político americano Nelson Rockefeller, ex-cabeça da política de boa vizinhança de Franklin Roosevelt e futuro vice-presidente dos EUA. Mas o inimigo mais temível do prefeito era doméstico: um jovem vereador chamado Carlos Lacerda. A ideia do Maracanã tinha sido incorporada à paisagem mental da população carioca pela campanha lançada em 1947 pelo jornalista Mário Filho, em seu Jornal dos Sports – o que lhe valeria a honra póstuma de dar nome ao estádio. O recém-empossado Mendes de Morais aderiu com entusiasmo, mas o projeto dividiu a Câmara Municipal. O compositor e radialista Ari Barroso, vereador pela UDN, aliou-se ao PCB para apoiá-lo. Muitos não queriam estádio nenhum. E a turma de Lacerda, udenista como Ari, gostaria de ver o “colosso” plantado em Jacarepaguá. Orador temido, ensaiando para se tornar poucos anos mais tarde o maior pesadelo de Getúlio Vargas, Lacerda esgrimia tiradas como esta: “eu represento a vontade de 37.000 eleitores. O prefeito, apenas a copa e a cozinha do executivo federal”. O astuto Ari contra-atacou fantasiando focos de malária em Jacarepaguá e encomendando uma pesquisa ao Ibope, algo pouco comum na época, para dar números à paixão carioca pelo Maracanã: a maioria da população era a favor. A aprovação levou meses, e muitos outros seriam necessários para que três comissões escolhessem o melhor projeto – de autoria de um buquê de arquitetos, com o de Oscar Niemeyer amargando a derrota – e um edital definisse as seis construtoras que trabalhariam em conjunto. Em maio de 1948, foi criada a Administração dos estádios Municipais, órgão encarregado das obras. O lançamento da pedra fundamental só veio em 2 de agosto de 1948. Será que ia dar tempo? O suspense prolongou-se até o fim. Em crônica publicada em 1991 no Jornal do Brasil, o jornalista João Máximo recordou que o passatempo dos meninos de Vila Isabel daquela época, como ele próprio, era ir todo sábado ao Maracanã para ver o andamento das obras. As notícias que mobilizaram o Rio de Janeiro e o Brasil no fim dos anos 40 – a surpreendente vitória de Marlene sobre Emilinha Borba na eleição da rainha do rádio, o lançamento da candidatura de Getúlio Vargas à Presidência da República e a criação, pela Igreja Católica, de uma campanha em favor da família e dos bons costumes chamada Legião da Decência – tinham sempre a concorrência dessa interrogação prolongada, angustiante. O biógrafo de Ari Barroso, Sérgio Cabral, conta que as obras estavam a meio caminho quando, em agosto de 1949, ele cedeu ao nervosismo e denunciou na tribuna da Câmara o que acreditava não passar de um conjunto de “armaduras de madeira”: Pois então tinha brigado tanto pelo Maracanã para que ele não ficasse pronto a tempo? Se no fim ficou, a mão de obra barata teve muito a ver com isso. Os 1.500 trabalhadores braçais do Maracanã ganhavam de 32 a 40 cruzeiros por dia, o que totalizava um salário inferior à média de um operário carioca da época. Muitos deles moravam na vizinha favela do Esqueleto, mais tarde removida para dar lugar à atual universidade do estado do Rio de janeiro (Uerj), e tiveram um bônus informal – que rendeu incontáveis puxadinhos – com as toneladas de madeira abandonadas no local depois que tanques do exército derrubaram os tapumes em torno do estádio, na véspera da inauguração. Dos 2,3 milhões de habitantes do Distrito Federal, apenas 300.000 – incluindo 60.000 funcionários públicos – tinham emprego formal. Se a cidade, vítima do crescimento acelerado, sofria com engarrafamentos constantes e uma crônica falta de água que só começaria a ser resolvida em 1955, com a ligação provisória da adutora do Guandu, também nas obras do estádio imperava certo caos. O maior símbolo da improvisação é o operário anônimo citado pelo jornalista Renato Sérgio no informativo livro Maracanã – 50 Anos de Glória, que teria se queixado a um repórter, mostrando uma foice: “Me deram isso para cavar buracos”. Para usar uma gíria carioca de sucesso na época, segundo Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, a construção foi no “vai da valsa”. Mas foi. Restaurado seu otimismo, e disposto a faturar algum por fora, Ari Barroso compôs às vésperas da Copa do Mundo um sambinha de ocasião que Linda Batista gravou, chamado O Brasil Há de Ganhar. Como logo se veria, tanto o autor de Aquarela do Brasil quanto o Jornal dos Sports estavam errados: engenharia civil era uma coisa; futebol, outra. Um mês após a inauguração do superestádio, construído na marra, um gol de Ghiggia aos 34 minutos do segundo tempo da final deu a Copa do Mundo ao Uruguai. Seja como for, a façanha do Maracanã ainda impressiona. Em 2002, o então prefeito do Rio, Cesar Maia, prometeu erguer em dois anos na Barra da Tijuca a Cidade da Música – que já mudou seu nome para Cidade das Artes, mas continua inacabada. A Copa de 2014 no renovado colosso do Derby é uma incógnita.

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