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Valter Hugo Mãe, o fofo da literatura

Como um escritor português (que merece ser levado a sério) apelou para a emoção e usou a festa literária de Paraty de maneira exemplar para passar de desconhecido a fenômeno no Brasil

Por Sérgio Rodrigues
15 jul 2011, 23h06

“Casa comigo.” A certa altura de sua sessão de autógrafos de três horas e meia de duração, imediatamente após o debate em que tinha sido ovacionado na Tenda dos Autores da Flip, sexta-feira da semana passada, o escritor português Valter Hugo Mãe encontrou esse bilhete dentro do exemplar de a máquina de fazer espanhóis que uma jovem leitora lhe estendia. Tratava-se, em suas palavras, de “uma miúda muito impressionante” – em bom brasileiro, uma gatinha. A mensagem curta vinha acompanhada de um email.

Mãe – nome artístico, que ele prefere em minúsculas, de um sujeito registrado há 39 anos como Lemos – não respondeu na hora, mas pega o voo de volta a Portugal, hoje à noite, levando o bilhete na bagagem. Pelo menos por enquanto, a “miúda impressionante” não precisa abandonar a esperança de ser a mãe do filho de Mãe, um projeto que ele anunciou no palco na mais emotiva das mesas do festival literário de Paraty, encerrada com aplausos de pé e lágrimas do escritor e de parte do público.

O que aconteceu naquele dia é algo difícil de explicar. Valter Hugo Mãe (que aqui vai com iniciais maiúsculas mais civis que artísticas) é um escritor para se levar a sério, embora sua insistência em escrever apenas com letras minúsculas dê a leitores desavisados a impressão de que se trata de um cultor de poses ou modismos. Nada disso: seu estilo consegue fazer uma rara combinação de histórias de grande potência afetiva – com um pessimismo tragicômico que corta qualquer possibilidade de pieguice – com um trabalho de linguagem que não exclui a invenção formal, embora exclua a chatice do experimentalismo. Compreende-se o entusiasmo com que José Saramago o elogiou, falando em “tsunami literário”. Além disso, trata-se de um curioso personagem pop em seu país, vocalista e letrista de uma banda de pós-fado chamada Governo, que lançou em 2009 o disco Propaganda Sentimental (confira uma de suas músicas no clipe abaixo).

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No entanto, Mãe chegou à cidade histórica do litoral fluminense como um autor praticamente desconhecido do público brasileiro, com apenas dois títulos lançados deste lado do Atlântico: antes de a máquina de fazer espanhóis, que a Cosac Naify pôs na rua às vésperas da Flip, tinha saído este ano o remorso de baltazar serapião pela Editora 34. Careca de expressão severa, sempre vestido de preto – “para o bem ou para o mal, sou uma espécie de pós-gótico” – e pouco dado a sorrisos, Mãe deixou Paraty como o maior fenômeno de popularidade instantânea da história da Flip. Os 500 exemplares de a máquina… levados para a cidade esgotaram-se no dia seguinte. Os eventos pós-festival de que participou esta semana em São Paulo e no Rio de Janeiro tiveram casa cheia. Suas duas editoras brasileiras já planejam novos lançamentos. Nas ruas do Leblon, onde ficou hospedado no Rio, foi cumprimentado calorosamente por desconhecidos. Uma surpresa? “Redondamente”, responde Mãe. “Seria até imbecil da minha parte imaginar algo assim. Ao chegar, pensava que conhecer Elza Soares seria o meu prêmio maior.” A jornalista portuguesa Isabel Coutinho, do jornal Público, também se espantou. “Valter tem empatia e sabe ser sedutor, em especial junto ao público feminino mais velho, talvez porque a máquina de fazer espanhois seja a história de um octogenário”, diz ela. “Mas o que se passou em Paraty foi algo de outra ordem.” O tom emocionado e emocionante do escritor português parece ter sido a chave para sua comunicação imediata com o público brasileiro. No palco, Mãe falou de seus recentes anseios de paternidade, definiu os livros como “máquinas de fazer sentir” e, num tiro de misericórdia com bala de canhão, leu uma declaração de amor ao Brasil. Engolida pelo companheiro de mesa, a bonita escritora argentina Pola Oloixarac, que tinha chegado a Paraty com fama de musa, cancelou todos os seus compromissos posteriores e passou dois dias sem por os pés fora da pousada. Quando reapareceu, queixou-se de Mãe, acusando-o de ter usado o golpe baixo do sentimentalismo para conquistar o público. “É a minha tonalidade, sempre me dirigi assim às plateias portuguesas”, defende-se ele, para contra-atacar em seguida: “A verdade é que ela pouco fazia sentido. Estava mais preocupada em se manter bem penteada e elegante na cadeira. Senti-me a falar sozinho.” O português também não acredita na gripe que Pola apresentou como motivo de seu sumiço: “Todos ficamos com a impressão de que ela estava a chorar no hotel”.

A argentina e o português formaram no palco uma dupla realmente estranha. Ela fez a apologia de uma literatura cerebral, mas soava confusa e desarticulada. Ele defendia a emoção como valor literário supremo com palavras claras e medidas, como se escrevesse poesia – linguagem à qual atribui seu aprendizado literário, exercitado em sucessivas coletâneas de versos, antes de estrear como romancista. “De fato, me interessa pouco um livro que seja muito inteligente e aborrecido”, afirma. “Gosto da dimensão encantatória do texto, entendo o livro como algo mudador.” Mãe garante que nem o discurso de amor ao Brasil que conquistou definitivamente o público – escrito com habilidade e pontuado de referências a Renato Russo, telenovelas e amigos brasileiros queridos – teve algo de calculado. Diz que redigiu aqueles nove parágrafos, metade na noite da véspera, o restante poucas horas antes de subir ao palco, como uma defesa contra o medo de um desastre. “Quando vi aquela Tenda amarelei, como vocês dizem”, lembra. “Em Portugal não temos nada que se aproxime da experiência de falar para 2 mil pessoas. Eu tinha ido ver o Antonio Candido, vi que ele tinha seus apontamentos. Pensei que, se falasse ali sem ter nada escrito, seria como um trapezista sem rede.” Se alguém anteviu o sucesso, afirma Mãe, foi seu editor na Alfaguara portuguesa, Alexandre Vasconcelos, também presente em Paraty. “Ele acreditou mais em mim do que eu mesmo.” Vasconcelos, que se ressentia de não ter registros em vídeo de atuações carismáticas do escritor em festivais portugueses, contratou o cinegrafista carioca Gustavo Caldas para acompanhar todos os seus passos naquela sexta-feira que imaginava promissora. “No início isso me estressou muitíssimo”, diz Mãe. Mais tarde agradeceu ao editor. O que será feito com as imagens de um dia que ele define como “tão especial” ainda é incerto. “Talvez um vídeo de dez minutos no YouTube”, diz, vago. O mesmo YouTube onde já se pode ver o momento em que ele interpreta a capella um sucesso de Amália Rodrigues, O Fado de Cada Um, no coquetel oferecido sábado à noite a bordo de uma escuna ancorada no cais de Paraty.

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O sucesso não veio sem percalços. Na primeira vez que o chamaram de “fofo”, Mãe se ofendeu. “Fofo em Portugal é algo que é vazio, tolo”, diverte-se. Mas o adjetivo foi tão repetido que, intrigado, acabou por se inteirar de seu sentido brasileiro. Propostas parecidas com a da “miúda impressionante” que o pediu em casamento foram desde aquela sexta-feira, em suas contas, “de dez a trinta por dia”. O colunista Ancelmo Góis, do jornal O Globo, publicou ainda durante a Flip uma nota em que desencorajava a legião de admiradoras do escritor. “As pessoas ofereceram-me muita coisa, e não só as mulheres”, diz o reservado Mãe, mantendo-se perfeitamente sério ao emendar: “Algumas propostas eram de casamento, outras apenas de ensaio, aquilo que vem antes da reprodução”.

Valter Hugo Mãe deixa o Brasil com planos de voltar. Este ano, ocupado com o lançamento de seu próximo romance, em setembro, dificilmente conseguirá. O Filho de Mil Homens será seu primeiro livro com maiúsculas, depois que as minúsculas se tornaram uma espécie de marca registrada. “Não quero sentir que fiquei agarrado a algum tipo de receita”, diz. Depois deste, que considera com certa preocupação seu livro mais otimista com a humanidade, pretende retomar “temáticas mais escuras” e ambientar romances em outras terras. É aí que entra o “plano maquiavélico” de passar um tempo morando na Ilha da Conceição, em Niterói, onde passou férias inesquecíveis em 2000, para escrever uma história brasileira. Não, a “miúda impressionante” não deve julgar que Mãe está à procura de um novo país para chamar de seu. Nascido em Angola, mas filho de portugueses, deixou o país africano aos dois anos de idade para nunca mais voltar. Não tem sequer dupla nacionalidade. É um cidadão português provinciano que não abre de morar na pequena cidade litorânea de Vila do Conde, distante dos círculos literários de Lisboa. O sucesso brasileiro é encarado com “um sentimento de gratidão que não tem tamanho”, mas também com um grão de ceticismo: “Muitas coisas na vida são momentos. Eu não me admirava nada de vir aqui no próximo ano e saber que ninguém mais se lembra de mim”.

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