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Teimosa, não: tenaz

Fluente e envolvente, 'Suprema' narra a vida da juíza Ruth Bader Ginsburg, uma pragmática apaixonada que ajudou a desmantelar o amparo legal à discriminação

Por Isabela Boscov Atualizado em 15 mar 2019, 07h00 - Publicado em 15 mar 2019, 07h00

Há um quê de oportunista em comemorar bem agora, no auge da onda pós-femi­nista, a figura de Ruth Bader Ginsburg, a segunda mulher a ocupar uma cadeira na Suprema Corte americana, a partir de 1993 (a conta segue morosa: são quatro no total, até hoje). A própria protagonista de Suprema (On the Basis of Sex, Estados Unidos, 2018; em cartaz no país), porém, é o melhor antídoto contra o esquematismo que poderia banalizar o projeto: aos 86 anos, completados neste 15 de março, em recuperação de um câncer e já de volta à ativa, a advogada e juíza tem carreira estelar, particularmente em causas associadas à discriminação por gênero. Mas é na índole inquisitiva que ela antes de tudo se destacou, e na capacidade de dissecar a lei e as atitudes cotidianas em busca dos nós que as atam a noções que a realidade tornou obsoletas.

Dirigido por Mimi Leder, veterana de séries como Plantão Médico, o filme apanha Ruth (Felicity Jones) em 1956, uma de menos de meia dúzia de alunas no mar de homens do curso de direito da Universidade Harvard. A condescendência e o sarcasmo são seus velhos conhecidos, mas ainda a exasperam. Num jantar com o reitor, em que cada uma das alunas é tratada como objeto exótico e instada a dizer por que escolheu estar ali, Ruth declara: “Para compreender melhor o trabalho do meu marido e ser uma esposa mais paciente” — e é típico que os convivas nem detectem a ironia. Por que mais ela estaria ali, Ruth comenta mais tarde com o marido, Martin Ginsburg (Armie Hammer), senão para virar advogada? Haja estupidez.

Muito de Suprema se desenha sobre essa batalha pessoal da personagem: a impaciência com a estupidez, e a necessidade de disfarçá-la — porque homens são tenazes, mas mulheres são meramente teimosas. Nos dias de hoje, uma pessoa como Ruth já despertaria grande admiração: jovem, miudinha, casada e mãe de uma menina de colo, ela a certa altura cursou não apenas as suas matérias como também as do marido, que lutava contra um câncer de prognóstico terrível mas não queria ficar para trás. Meio século atrás, ela era uma criatura ainda não descrita pela taxonomia. De forma que, apesar do currículo extraordinário, nenhuma firma de advocacia de Nova York a contratou. Ruth foi ser professora universitária e enfrentar a frustração crescente de preparar a geração seguinte para as mudanças que ela mesma queria efetuar.

Acima, na vida real, faz o juramento de ingresso na Suprema Corte, em 1993, por indicação de Bill Clinton (à esq.): contra as atitudes obsoletas (Jeffrey Markowitz/Sygma/Getty Images)

No início dos anos 70, porém, Ruth encontrou um caminho possível em um caso singular, no qual a lei discriminava um homem por ser homem. As tentativas de equiparar os direitos das mulheres aos dos homens nos tribunais haviam sido um fiasco. Mas e se a corte fosse obrigada a examinar o inverso disso? A preparação dessa defesa que dividiu águas na jurisprudência americana é a linha mestra da segunda parte do filme, e Mimi Leder, uma narradora segura e fluente, tira o melhor do roteiro e de sua atriz excelente para repropor à geração atual o feminismo professado por Ruth e suas contemporâneas, que parece cada vez mais arrojado. Como ela própria resume em uma cena, citando a abolicionista Sarah Grimké: dispensam-se favores, e solicita-se apenas que os homens parem de pisar no pescoço das mulheres. Se os pisões antes autorizados por centenas de leis discriminatórias passaram a ser ilegais, é em boa parte por causa da pragmática e, sim, tenaz Ruth Ginsburg.

Publicado em VEJA de 20 de março de 2019, edição nº 2626

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