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‘SP é uma declaração sobre a modernidade’, diz Amos Gitai

Diretor israelense volta à Mostra Internacional anunciando seu amor pelo evento e sua admiração pela capital. E não se exime de falar de política no Oriente Médio. "A limitação das mulheres é uma situação alarmante. Essa é a grande realização da Primavera Árabe, fazer as mulheres andar ainda mais para trás?"

Por Mariane Morisawa
1 nov 2012, 06h35

Amos Gitai é um dos queridinhos da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Já apresentou alguns de seus filmes no evento e sempre foi próximo dos diretores Leon Cakoff, morto em outubro do ano passado, e Renata de Almeida, sua viúva. Quando ela pediu que o cineasta israelense viesse novamente ao Brasil para exibir seus dois últimos trabalhos e dar uma oficina gratuita ao público da mostra, ele não pensou muito, apesar das 12 horas de viagem que é incapaz de abstrair. Sua nova visita foi marcada pela exibição dos documentários Canção para Meu Pai (2012) e Carmel (2009), um respiro poético em uma carreira marcada por longas-metragens críticos, sobre a guerra ou a religião em Israel, como Kadosh (1999) e Kippur (2000).

Em Canção para Meu Pai, Gitai mostra a trajetória do próprio pai, o arquiteto polonês Munio Gitai Weinraub, que era estudante da escola de design Bauhaus, na Alemanha, quando ela foi fechada pelos nazistas. Já em Carmel, ele se baseia nas cartas da mãe para traçar o percurso de Israel. Os dois longas dialogam não apenas por se basearem no pai e na mãe do cineasta, mas por trazerem um panorama do país, o verdadeiro tema em toda a obra de Gitai. “Os dois filmes são complementares. Canção para Meu Pai é sobre a diáspora, sobre a Europa, porque termina quando o barco levando meu pai chega a Haifa, à Terra Prometida. E Carmel é todo em Israel, então é mais sobre a situação contemporânea”, diz Gitai.

Canção para Meu Pai também faz um comentário sobre a arquitetura atual ao enaltecer a vontade dos profissionais da Bauhaus de pensar não apenas na beleza dos edifícios, mas em quem iria utilizá-los. “Os grandes arquitetos de hoje parecem querer fazer só aeroportos, museus, estádios. Às vezes, acho que eles estão com inveja de nós, cineastas, porque desejam apenas produzir imagens”, diz o diretor ao site de VEJA. Ao falar de arquitetura, Gitai também se derrama sobre São Paulo, uma cidade que, para ele, é uma “declaração sobre a modernidade”. “É caótica, com seus congestionamentos. São Paulo é uma interrogação.”

Gitai também não se exime de falar de política no Oriente Médio. “A limitação das mulheres é uma situação alarmante. Essa é a grande realização da Primavera Árabe, fazer as mulheres andar ainda mais para trás?” Foi sobre a capital paulista, a Mostra Internacional e a situação no Oriente Médio que o cineasta falou nesta entrevista. Confira abaixo os melhores momentos.

Você tem uma relação antiga com a Mostra, não? Eu amo a Renata (de Almeida) e o Leon (Cakoff), pessoas muito especiais. Dá para sentir seu amor pelo cinema. Foi muito triste saber que Leon morreu. Ano passado tive um pressentimento ruim, porque alguns amigos o viram em Cannes e me disseram que ele não estava bem. Como iriam mostrar meu filme em Santiago, no Chile, aproveitei para dar uma passada por São Paulo para encontrá-lo. Almoçamos, algumas semanas antes de ele morrer. Realmente os amo. E acho incrível que a Renata tenha encontrado energia para continuar. São Paulo é uma das cidades mais importantes do mundo, e com a mostra os paulistanos podem ver filmes a que não teriam acesso. Na minha experiência na cidade, percebo que as pessoas apreciam muito esse serviço. Quando a Renata me ligou neste ano, dizendo que queria exibir dois filmes meus, disse a ela que tudo bem, me sentaria 12 horas num voo e viria.

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Como vê a reação das pessoas a seus filmes no Brasil? É incrível porque prova que há algo nos meus filmes que se comunica com a plateia brasileira. Especialmente nesses dois longas selecionados, que são mais poéticos. Não são formulaicos. Acho que desafiam o espectador. Adoro vir a São Paulo.

Filmes documentais muitas vezes seguem um formato de imagens de arquivo e depoimentos, mais adequados para a exibição na televisão. Não é o caso de seus filmes. Não mesmo, eu resisti muito a isso. Quando você fala de memória, não deve ser sentimental. Pela memória de meu pai e as cartas da minha mãe, eu não quero ficar preso ao passado, mas falar sobre o presente. Mostrar que meu pai era o maior arquiteto do planeta não me interessa (risos). E acho que nem ele ficaria feliz com isso.

Sua carreira tem muitos filmes políticos, mas tanto Canção para Meu Pai quanto Carmel são mais poéticos. Você disse durante o Festival de Veneza que o momento é tão complicado que não sabe como abordá-lo no cinema. Como vê a situação no Oriente Médio? Está muito ruim, porque a região inteira está numa situação ruim, a tal ponto que não dá para ver de que maneira poderia haver avanços. É uma situação muito perigosa. Eu mesmo sou da geração que lutou na Guerra do Yom Kippur (conflito entre árabes e israelenses em 1973), então sei que, quando as coisas ficam assim, pode haver uma guerra. Há um impasse. Os poderes não querem fazer concessões, querem bater de frente. Pode virar um drama. Como muitos dos meus trabalhos são contra a corrente, não acho que preciso me juntar aos alto-falantes que querem ir à próxima guerra. E posso sugerir, por meio desses filmes íntimos, uma reflexão. Em Carmel, há uma reflexão sobre as guerras. Os dois filmes são complementares. Canção para Meu Pai é sobre a diáspora, sobre a Europa, porque termina quando o barco levando meu pai chega a Haifa, à Terra Prometida. E Carmel é todo em Israel, então é mais sobre a situação contemporânea, por meio das cartas da minha mãe. Acho que os dois dialogam entre si.

Agora você não vê muita esperança? Acho que não podemos dizer que não há esperança, porque isso ajuda a situação a ficar pior. Temos, às vezes, de ser otimistas apesar do que vemos. Porque aí a energia e o desejo de mudança acabam provocando transformações. Senão ficamos niilistas. Precisamos de esperança. Mas é um momento sombrio em todas as partes, em todos os aspectos: direitos humanos, direitos das minorias – a contínua limpeza étnica no mundo árabe contas as minorias, cristãos, coptas, curdos. Isso é terrível. Essa área, que era tão aberta, foi dominada pelos fanáticos, um influenciando o outro. Não é um bom momento.

Mesmo com a Primavera Árabe? Você vê essa garota que levou um tiro no Paquistão porque ela acha que as meninas têm de ir para a escola… A limitação das mulheres é uma situação alarmante. Grande parte da última edição do Courrier International é dedicada à supressão dos direitos das mulheres na Tunísia, na Líbia. Então, essa é a grande realização da Primavera Árabe, fazer as mulheres andar ainda mais para trás? O que é isso? As tendências não são claras.

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Você acha que em Israel os poderosos estão mais radicais? Sim! O governo atual é muito conservador. Vamos ver o que acontece nas eleições de janeiro, não me parece algo digno de esperança. Mas vamos ver, ninguém sabe. Temos as eleições americanas antes… Muitos assuntos para pensar. Não me considero um cineasta profissional, mas estou muito interessado em ser apenas um cidadão, de Israel e do mundo. E esse é o material que inspira muitos de meus trabalhos. Tenho de me conectar ao material, ou não faço o filme.

Canção para Meu Pai fala muito de arquitetura. No momento, parece haver um pé atrás com as obras espetaculares, em favor de uma arquitetura mais pensada nas pessoas que vão usá-la. O que acha disso? Queria fazer uma homenagem aos arquitetos da geração do meu pai. Ele podia desenhar grandes projetos ou um bicicletário pequeno em Haifa, ficava feliz do mesmo jeito. Os grandes arquitetos de hoje parecem querer fazer só aeroportos, museus, estádios. Às vezes, acho que eles estão com inveja de nós, cineastas, porque desejam apenas produzir imagens. E a boa arquitetura, para mim, vai além das imagens. Estou cansado do uso de vidro e alumínio. Devemos voltar atrás, pensar em ambientes agradáveis, com árvores, espaços públicos, boas proporções. Vamos começar com isso. Deixemos o exibicionismo para depois.

São Paulo é uma bagunça em termos de arquitetura. Como se sente aqui? É uma declaração sobre a modernidade. É caótico, com seus congestionamentos. Para mim, São Paulo é um ponto de interrogação. Ela vai se tornar cada vez pior? Ou as pessoas vão pensar que, numa cidade grande e importante como São Paulo, é preciso ter um bom transporte público? Que é preciso se livrar dos carros privados? E abrir espaços públicos abertos? Aí é uma questão dos poderes políticos: eles são capazes de fazer isso? Pegue Brasília, por exemplo. Você pode gostar ou não, mas o interessante é que, em determinado momento da história, os políticos podiam tomar essa decisão. E hoje, eles não podem mais. Por exemplo, vamos fechar parte das ruas e criar bondes. Tudo está tão complicado que não sei se dá. É interessante ver o que vai acontecer a São Paulo. Estou conversando com os arquitetos suíços Herzog & De Meuron, que querem que eu faça um filme com eles. E falo para eles a mesma coisa que estou dizendo aqui, mas continuam abertos. Quero visitar o local onde deve ser construído o centro cultural projetado por eles aqui em São Paulo. Pouco a pouco, estou me interessando de novo pela arquitetura. Não me arrependo de ter abandonado, eu desenhei poucos projetos, meu apartamento, o da minha mãe. E vou fazer um centro de cinema perto do Mar Morto.

E como vê o cinema hoje? Não entendo a empolgação com essa revolução da internet. Politicamente, é um importante instrumento. Mas em termos de cultura está dando uma ilusão muito superficial de acessibilidade. Um bom livro não é fácil. Nem um bom filme, não é para ser consumido, é para ser interpretado. Vamos ver. É um período de transição. Não podemos dizer que é tudo negativo. Temos de encontrar maneiras de expor obras mais desafiadoras e torná-las acessíveis a uma nova geração.

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