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Sorry, Beatles. O hip-hop é que fez revolução

Em entrevista ao site de VEJA, o alemão radicado em Londres Matthias Mauch fala sobre o estudo liderado por ele para avaliar composições musicais a partir de técnicas de big data e descobrir, segundo a matemática, os reais revolucionários das paradas de sucesso

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 10 Maio 2015, 10h39
Beatles e Snoop Dogg
Beatles e Snoop Dogg (VEJA)

A música é como um troféu para os britânicos, que possuem um invejável currículo na área com nomes que vão de Adele e Amy Winehouse a The Smiths, Oasis, Rolling Stones, Led Zeppelin e, os mais aclamados, os Beatles. A cultuada invasão britânica nas paradas americanas, iniciada pelo quarteto de Liverpool nos anos 1960 e reforçada pelo Britpop na década de 1980, é vista quase como uma segunda forma de colonização. Mas, nesta semana, a música do Reino Unido sofreu um golpe duro em seu orgulho. Um grupo de pesquisadores ingleses, liderado pelo matemático alemão Matthias Mauch, divulgou o resultado do estudo “A Evolução da Música Popular: EUA 1960-2010”, que tira a coroa da cabeça de John Lennon e parceiros e a coloca na de representantes do hip-hop como Busta Rhymes, Nas, Snoop Dogg e, para citar o mais atual, Kanye West, apontados pelos pesquisadores como os verdadeiros revolucionários da música nos últimos 50 anos. Foram eles, segundo o levantamento, que de fato lançaram tendências. Beatles e Rolling Stones apenas requentaram outras criadas antes deles.

O estudo analisou mais de 17.000 canções que tiveram lugar na Billboard Hot 100, a prestigiada parada americana dos títulos mais vendidos e tocados nas rádios. A partir de técnicas de big data, pelas quais se pode armazenar e cruzar uma grande quantidade de dados por computador, o estudo tinha a intenção de mostrar a evolução do gosto popular dentro da música comercialmente bem-sucedida. Para isso, o sistema agrupou de forma automática padrões de acordes, timbres e tons, de modo a organizar uma estatística em torno dos gêneros.

Foi assim que Mauch e os colegas perceberam que a grande revolução na parada americana aconteceu a partir de 1991, quando o hip-hop chegou sem pedir licença e quebrou os antigos esquemas de melodias e maneiras de cantar. “O campo harmônico do hip-hop é único e muito distinto do restante da história da música. Algumas das canções nem possuem acordes. O estilo reinventou o panorama musical”, diz Mauch.

Já o rock e o pop, apesar da aura rebeldia que envolvia bandas como os Beatles, surfaram em tendências pré-existentes. A cópia de acordes e timbres, aliás, é frequente no meio, em que boa parte das inovações provém de métodos tecnológicos, como se viu na era do disco, com seus DJs e picapes, e na música eletrônica, rica em sintetizadores. “A música é baseada no copia e cola”, afirma Mauch.

Professor da Universidade Queen Mary de Londres, o alemão de 36 anos, que vive na Inglaterra há oito, é matemático por profissão e músico nas horas vagas. “Quando me formei, tive que decidir qual dos caminhos seguir e vi uma boa oportunidade de juntar os dois. Hoje, estudo música com base na matemática.”

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Qual a metodologia utilizada na pesquisa? Usamos várias, mas a mais importante foi a que permitiu a criação de ferramentas para analisar as músicas em um processo informatizado. Escolhemos um conjunto de dados com 17.000 canções e os computadores “ouviram” as gravações, analisando harmonia e timbres. Dentro da harmonia, foram examinados padrões de acordes. Depois, o sistema agrupou esses milhares de faixas a partir de estilos, como o rock, o country, o hip-hop. A partir daí, eu pude investigar os resultados, avaliando desde características instrumentais até o clima das canções.

Os instrumentos e vocais foram separados durante a análise? Não. Usamos as músicas originais com todos os elementos juntos, instrumentos e vocais. Existem métodos que separam instrumentos, mas eles não são tão confiáveis. Queria analisar algo que eu conhecia: o som completo.

Quanto tempo a pesquisa demorou a ficar pronta? Começamos há quatro anos. Demoramos, pois queríamos fazer algo bem feito. Após alguns testes, percebemos que tínhamos que melhorar. Recomeçamos diversas vezes. Era um tipo de pesquisa que não nos permitia saber bem o que encontraríamos no final. A parte mais difícil foi pensar em como fazer o programa funcionar e encontrar uma boa maneira de chegar aos resultados.

Gráfico mostra a evolução dos estilos musicais nas paradas americanas
Gráfico mostra a evolução dos estilos musicais nas paradas americanas (VEJA)

Entre os destaques da pesquisa está que o hip-hop é a grande revolução da parada musical americana, e não a invasão britânica, como se imaginava. O que faz o estilo merecer esse destaque? O campo harmônico do hip-hop é único e muito distinto do restante da história da música. E isso acontece especialmente porque o estilo tem o rap, em que as pessoas falam, então o conteúdo da harmonia não importa tanto. Algumas canções nem possuem acorde. O estilo reinventou o panorama musical, não era uma cópia de composições do passado. Eles entraram massivamente nas paradas entre o fim dos anos 1980 e o começo dos anos 1990, especialmente, e estão aí até hoje.

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Além do hip-hop, que outro estilo se destacou na pesquisa? Há muitos gêneros que merecem destaque, mas percebemos que no começo dos anos 1980 a parada americana passou por uma grande mudança, causada especialmente pelo timbre dos instrumentos. As guitarras ficaram mais agressivas e as baterias, mais encorpadas. O período coincide com a chegada de drum machines (programações de bateria), sintetizadores e samples, por exemplo, equipamentos tecnológicos que alteraram o gosto pela música na época.

O senhor não acha arbitrário classificar a importância de gêneros musicais com base em dados e computadores, sem levar em conta o impacto cultural, por exemplo? Sim e não. Minha pesquisa não é uma verdade absoluta. Tem muitas nuances a se analisar na música, como o impacto na cultura e no comportamento. Por outro lado, não se deve analisar uma canção apenas pelo que ela causa na sociedade. Também é necessário avaliar a música em si. E agora podemos fazer isso em larga escala. É uma nova oportunidade e podemos, no futuro, unir as duas visões.

Pelo estudo, é possível dizer se algum estilo morreu nas últimas décadas? Uma coisa triste que percebemos foi a queda do acorde da sétima dominante (acorde com quatro notas em um intervalo de sete, entre Dó e Si Bemol, capaz de criar uma espécie de suspense na música), muito comum em gravações de blues e jazz. No início dos anos 1960, esses estilos estavam no auge, mas aos poucos saíram de moda e, em 1975, praticamente desapareceram. Claro que outras coisas surgiram. Percebemos um uso maior do acorde de sétima menor (outro acorde com quatro notas no intervalo de sete que existe entre Dó e Si, mas com espaço menor entre elas), que é comum em canções de disco, como Night Fever, dos Bee Gees. Era um acorde raro nos anos 1960 e cresceu na década de 1970. A era disco também foi um momento de coisas diferentes e interessantes, mas como foi algo efêmero não a classificamos como uma revolução musical.

Que cantor ou banda fez por merecer um lugar na história? Existem muitos artistas que merecem destaque, mas fico relutante em dizer um nome, pois não analisamos influência de um modo científico. Todos sabem que os Beatles e os Rolling Stones são bastante importantes. Foram as bandas britânicas que surgiram em 1960 e que sutilmente mudaram o som americano para algo mais redondo, com novos padrões. Mas, na verdade, o que percebemos é que sempre existiu uma base, um ciclo de influências que eles seguiram. Foi fácil notar que as músicas lançadas em um determinado ano eram bem parecidas com as do ano anterior. Há muita cópia. Até artistas marcantes surgiram de uma leva de cópias, caso das bandas citadas.

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Kool Herc

O jamaicano Kool Herc, apelido de Clive Campbell, é considerado o pai do hip-hop. Precursor do movimento que explodiria nos anos 1990, Kool se mudou para os Estados Unidos no início da década de 1960. Assíduo frequentador de festas no bairro do Bronx, em Nova York, ele já usava batidas remixadas misturadas com rap desde 1973, quando tinha 18 anos. 

https://youtube.com/watch?v=hh1AypBaIEk

Afrika Bambaataa

Parte da chamada old school do hip-hop, o DJ nova-iorquino se inspirou em Kool Herc nos anos 1970 e no fim dessa década reforçou o movimento que começava a nascer na periferia da cidade americana. Impressionado com o filme de guerra Zulu, de 1964, Afrika Bambaataa batizou seu movimento de Universal Zulu Nation, que a princípio pregava a paz, o amor e a unidade e hoje prega também a manutenção da memória do hip-hop. 

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Ice-T

Tracy Marrow ou Ice-T, como ficou conhecido, estourou entre o fim dos anos 1980 e o começo dos 90 e é considerado um dos precursores do gangsta rap, subgênero do hip-hop em que os rappers cantam sobre a marginalidade e o cotidiano em bairros pobres e violentos. Foi também um dos primeiros rappers a surgir em Los Angeles, na Costa Oeste americana, e não em Nova York, até então principal cenário do estilo. Mais tarde, os representantes do hip-hop nos dois lados do país se tornariam rivais. O músico também atuou em séries de televisão e, recentemente, estrelou o reality show Ice Loves Coco, sobre a sua vida ao lado da esposa, Coco Austin.

Beastie Boys

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O grupo formado em 1979 com três rapazes brancos de ascendência judaica foi um dos primeiros conjuntos a abraçar o rap, que surgia em Nova York na mesma época em que eles se uniram. Os primeiros sucessos do trio, formado por Adam Yauch (MCA), Michael Diamond (Mike D) e Adam Horovitz (Ad-Rock), são marcados pela influência do punk e da música eletrônica. O último disco do grupo na sua formação original, Hot Sauce Committee Part Two, foi lançado em 2011, antes da morte de Yauch, em 2012. Os Bestie Boys chegaram ao fim dois anos depois. 

LL Cool J

Contemporâneo e parceiro de gravadora dos Beastie Boys, LL Cool J foi o responsável por adicionar um pouco do açúcar pop ao hip-hop. Um dos primeiros a compor rap com letra romântica, a exibir passos de dança coreografados e a fazer parceria com cantores de R&B, ele também inovou ao se mostrar empreendedor, perfil hoje comum entre os rappers, lançando uma linha própria de roupas e livros de autoajuda, além de um selo com artistas produzidos por ele. O sucesso nas paradas dos anos 1990 o levou a conquistar espaço na TV e no cinema, onde atuou em comédias e romances. Hoje, ele está na série NCIS: Los Angeles.

2Pac

Outro representante do movimento gangsta rap, Tupac Shakur se tornou um símbolo trágico da vida dos negros americanos. Depois de fazer parte do grupo Digital Underground, o rapper estourou sozinho com o disco 2Pacalypse Now, de 1991. A partir daí, ele teve diversos hits no topo das paradas e também muitas passagens pela prisão. Infelizmente, o estilo de vida cantado pelo rapper, que o fez vender mais de 75 milhões de discos, o levou à morte em 1996, quando ele levou um tiro na saída de um cassino. 

Snoop Dogg

Famoso hitmaker do hip-hop, Snoop Dogg lançou seu disco de estreia, Doggystyle, em 1993 e se manteve por cinco semanas consecutivas no topo das paradas. Descoberto pelo rapper Dr. Dre, Dogg é o representante mais bem-sucedido do gangsta rap. Seu ritmo lacônico e suas letras violentas amadureceram com os anos. Hoje convertido ao rastafári, Dogg prefere ser chamado de Snoop Lion. Seu último disco foi de reaggae, mas ele não abandonou o rap.

https://youtube.com/watch?v=1tWmyPMf3wU

Jay Z

Shawn “Jay Z” Carter se tornou um ícone entre o fim dos anos 1990 e início dos 2000. Mais que a sua qualidade musical, o que faz do marido de Beyoncé um destaque no hip hop é a sua mudança de estilo de vida. Se antes o gênero era dominado por jovens do gueto, Jay Z, um empresário e produtor bem-sucedido, mostra que um rapper pode encarnar o estereótipo do “sonho americano”. Ele hoje possui de time de basquete a gravadora, por onde produz nomes como Rihanna, Ne-Yo e Kanye West, sem falar no recém-lançado Tidal, serviço de streaming feito para competir com grandes como Spotify. 

50 Cent

Contratado pelo rapper branquelo Eminem — outro importante nome do hip-hop —, Curtis James Jackson III, ou 50 Cent, se tornou o principal nome do estilo em meados dos anos 2000. Confessional, o rapper canta sobre seu lar destruído, a vida nas ruas, experiências com drogas e, mais tarde, a ostentação da vida de celebridade. Ele é um dos principais representantes do hardcore rapper, uma evolução do gangsta. Sua aparência física, de corpo musculoso, tatuagem e correntes, é um reforço para a imagem do estilo que emana perigo. Apesar do jeitão truculento, ele se tornou mainstream e é adorado por diferentes classes sociais e raças no mundo. 

Kanye West

Nascido fora do eixo do hip-hop, de Nova York e Los Angeles, Kanye West veio de Chicago, Illinois, e se tornou rapidamente um fenômeno global. Seu primeiro disco foi The College Dropout, de 2004. Além do jeito diferente de cantar, mais ritmado que seus colegas de profissão, os principais trunfos de West são sua autoestima elevada e personalidade extravagante, além de opiniões distintas do meio, como a defesa de homossexuais. Seu pé no mundo fashion e expressões blasé o diferenciaram de outros rappers, e facilitaram seu status de celebridade. Para completar, ele se casou com a socialite Kim Kardashian, outro ego inflado entre os famosos. 

Isso mudou depois da invasão do hip-hop ou continua igual? Sempre foi assim e continua sendo. A música é baseada no copia e cola. Mas isso se tornou explícito nos últimos anos. Antigamente, o artista ouvia algo e copiava, mas não fazia tão igual, apenas usava o original como inspiração. Alguns até admitem que isso faz parte do estilo de criação deles.

Sua pesquisa vai até 2010, mas o senhor consegue ver, no panorama atual, algum artista com qualidades para mudar o rumo da música? Particularmente, gosto muito do trabalho do Muse e fiquei feliz com o sucesso do Mumford & Sons, que trouxe o frescor do folk de volta às paradas. Mas não consigo olhar para alguém hoje e pensar: este é o futuro da música. Não vivemos um momento de revolução.

De onde vem o seu interesse pela música? Eu tinha uma banda na Alemanha. Comecei a ter aulas de piano aos 5 anos, mas não me atraía tanto. Passei a ouvir mais músicas a partir dos 12, especialmente as das paradas americanas. Foi onde conheci o Queen, uma das minhas bandas favoritas. Tive um grupo amador na escola e outro que levei a sério na faculdade. Eu também canto, componho e toco guitarra. Porém, desde quando decidi focar na vida acadêmica, parei de tocar, o que é uma vergonha, preciso voltar. Quando me formei, tive que decidir qual caminho seguir e vi uma boa oportunidade ao juntar os dois campos. Hoje, estudo música com base na matemática.

O senhor é um alemão que vive na Inglaterra e acaba de dizer que os Beatles não são maiores que o hip-hop. Como está sendo tratado no país? Eles receberam a pesquisa com certo fascínio e curiosidade. Por enquanto, sem ressentimentos (risos).

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