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Sina escrita na pele

No brilhante 'Terra Estranha', reeditado no Brasil, James Baldwin mostrou que certas tragédias americanas atingem os negros apenas porque eles são negros

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 12 out 2018, 07h00 - Publicado em 12 out 2018, 07h00

Em um célebre programa da TV americana, The Dick Cavett Show, James Baldwin (1924-1987) discorria sobre algumas das pesadas questões raciais que afligiam os Estados Unidos naquela década de 60. A certa altura, o apresentador convoca um prestigiado filósofo da Universidade Yale, inclinado à filosofia existencialista, que passa, então, a criticar a aná­lise de Baldwin: “Por que reduzir tudo à questão da raça, da cor da pele?”. A resposta de Baldwin é ful­minante: “Vou lhe dizer o seguinte: quando eu deixei este país, eu o fiz porque nada de ruim poderia acontecer comigo lá fora que já não tivesse acontecido aqui. A nossa sociedade é assim, se eu der as costas, eu posso morrer”. O que vem explicitado nessa reação vigorosa de Baldwin — que pode ser vista no fascinante documentário sobre o escritor, Eu Não Sou Seu Negro (2016) — é que certas coisas só acontecem aos negros dos Estados Unidos exatamente porque eles são negros. A força desse depoimento fica ainda mais nítida quando lembramos que aquela era a sociedade que, no curto intervalo entre 1963 e 1968, havia testemunhado o assassinato de Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr, as maiores lideranças negras daquela década.

Em Terra Estranha, publicado em 1962, anos antes do debate na televisão, Baldwin expressa essa mesma consciência do problema racial americano pela voz de uma mulher branca. Cass Silenski, dona de casa em crise, está acompanhando Vivaldo Moore, jovem aspirante a escritor e também branco, ao Harlem. Nesse bairro (onde, aliás, o próprio Baldwin foi criado), mora a família de Rufus Scott, o baterista de jazz negro cujas desventuras abrem o romance. Vivaldo tenta explicar a Cass — comovidos, ambos, por uma tragédia que se abatera sobre Rufus —que, apesar de ele ser branco e seu amigo músico ser negro, “as mesmas coisas aconteceram” aos dois, dando ênfase a uma comunhão além das etnias, a um ecumenismo das dificuldades da vida. Pode ser, admite Cass, mas com uma diferença na repartição da má fortuna: “O que acontece aqui, com essas pessoas, acontece porque elas são negras”.

‘Terra Estranha’, de James Baldwin (tradução de Rogério W. Galindo; Companhia das Letras; 544 páginas; 69,90 reais) (//Divulgação)

Na terra estranha que é Nova York, cidade que emerge radicalmente multicultural, multilinguística, cambiante e vertiginosa na segunda metade do século XX, James Baldwin conseguiu dar expressão literária aos dilaceramentos raciais que atravessam as relações de amizade, os amores, os sucessos e os fracassos de seus personagens, sem que em momento algum o estereótipo triunfe sobre a sutileza, sem que a complexidade dê lugar à militância. Os personagens de Terra Estranha não têm certezas que durem muito mais do que uma explosão de fúria e sentimento, mais do que uma briga entre casais ou amigos, e o autor, com uma aguda capacidade para o mergulho psicológico e moral, desvela um mundo oscilante, em que preconceitos reais, pruridos sociais e uma moralidade apenas ambicionada pelos personagens estão sempre em conflito. Em jogada brilhante, o escritor conduz o leitor de Nova York para outros tantos pontos geográficos — o Alabama racista, a Paris cosmopolita —, reforçando a sensação de multiplicidade que a própria metrópole internaliza. Baldwin deu expressão artística do mais alto nível a dramas humanos e sociais que, nas mãos de outros autores, facilmente se degenerariam em má literatura de boa consciência.

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Iluminando a estranheza daquela terra, daquela época e daquele mundo social incerto, Baldwin desenha a arquitetura do romance de modo a fazer com que se deem voz e ênfase alternadamente a dilemas distintos: à derrocada do talentoso músico Rufus Scott, segue-se o reerguimento de seu amigo Vivaldo Moore, e depois brilhará no romance a figura de Eric — ator, branco, sulista e homossexual que, como o próprio Bal­dwin (que também era gay), se exilara durante certo tempo na França. A narrativa não permite que o leitor entregue sua adesão a um único personagem.

Baldwin abre Terra Estranha com uma epígrafe de Henry James sobre o “abismal mistério” do que pensam, sentem e desejam as pessoas. É uma escolha reveladora: chamado por alguns de “o Henry James negro”, o que o autor nos oferece é grande literatura — como James fizera —, mas contendo o fogo das tensões raciais e sexuais de uma década incendiária que até hoje nos serve de espelho.

Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2018, edição nº 2604

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