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‘Serotonina’: o cinismo incendiário de Michel Houellebecq

Em novo livro, o autor francês reafirma-se como grande romancista do mal-estar atual ao falar do uso de antidepressivos e das tensões de seu país

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 16 ago 2019, 15h10 - Publicado em 16 ago 2019, 06h45

Quando o romance Submissão estava para ser lançado na França, uma charge da bizarra figura de seu autor — um senhor de olheiras profundas e corte de cabelo à la vassoura de piaçava — estampava a capa do semanário Charlie Hebdo. A publicação satírica dedicava várias páginas à lúgubre visão do futuro da França desenhada por Michel Houellebecq: em 2022, o país seria governado por um partido muçulmano fundamentalista, cedendo cada vez mais terreno ao islamismo e abandonando seu laicismo republicano. A capa em questão sintetizou uma perturbadora coincidência entre ficção e realidade: naquele fatídico 7 de janeiro de 2015, terroristas islâmicos invadiram a redação do Charlie e chacinaram quase toda a sua equipe. Submissão saiu da zona da “polêmica”, ultrapassou as acusações de “islamofóbico” e ganhou a notoriedade de um livro premonitório.

SEROTONINA,  de Michel Houellebecq (tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht; Alfaguara; 240 páginas; 59,90 reais e 39,90 reais na versão digital) (ALFAGUARA/Divulgação)

Pois Houellebecq conseguiu ante­cipar-­se aos fatos mais uma vez. Serotonina, o novo romance do francês de 63 anos, foi publicado em seu país em janeiro de 2019. Bastaram as primeiras leituras para que novamente Houellebecq fosse tratado como profeta do caos pela imprensa e pelos críticos. No livro, um tema de fundo vai ganhando proeminência à medida que avança a trama: a situação desesperadora dos agricultores franceses — acossados pelas regulações e burocracias da União Europeia, eles não têm condições de competir globalmente e estão destinados a um lento e sofrido desaparecimento. A revolta, com o invariável ingrediente da violência política, faz-se inevitável. Como inevitáveis foram as comparações com a irrupção dos protestos dos gilets jaunes, os “coletes amarelos”, que desde novembro de 2018 (quando Serotonina já estava escrito) tomaram as ruas do país em protestos radicalizados, pondo na berlinda o governo do até então promissor, cosmopolita e pró-União Europeia Emmanuel Macron.

Serotonina oferece, porém, mais que a antecipação do mal-estar social e político da França contemporânea. A história de Florent-Claude Labrouste, consultor de 46 anos mais que bem remunerado do Ministério da Agricultura local, encapsula um mal-­estar que ultrapassa em muito o dos dilemas políticos e sociais. Se é certo que o narrador e protagonista não poupa de seus cínicos ataques o modo de vida contemporâneo, com suas falsas crenças na correção política, seu credo humanista hipócrita e suas ideologias mal ocultadas — o livre mercado e a União Europeia são alvos preferenciais —, a verdade é que este é um romance sobre formas de tristeza e depressão de um homem cujos afetos todos falharam.

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O livro começa com Labrouste descrevendo sua rotina matinal e a ingestão de um comprimido de Captorix, o antidepressivo (fictício) que aumentaria os níveis de serotonina no organismo. O preço cobrado pela harmonia química artificial é o desaparecimento de sua libido. Os únicos vínculos sociais claros do protagonista são com seu trabalho, que considera estúpido, e com uma jovem namorada japonesa aristocrática e medíocre, Yuzu, a qual é abandonada quando ele descobre suas aventuras com múltiplos parceiros em vídeos de sexo grupal. Não há ciúme — no máximo, algum orgulho de macho ferido. Até mesmo o cinismo depreciativo, tão característico dos personagens masculinos solitários e autoirônicos da ficção de Houellebecq, vem abrandado no seu novo romance, conferindo uma precisa adequação ao tom narrativo.

O abandono da jovem e irrelevante namorada é planejado como uma saída de cena mais ambiciosa: um desaparecimento completo. Sem dramas e sem suspense, Labrouste deixa o emprego, encerra contratos, reorganiza a (confortável) vida financeira e opera o próprio sumiço, submergindo nas ruas de certas zonas parisienses e nas evocações de seus amores passados. Sem família, sem amigos, sem ambições e sem libido, só restará a ele a imersão na própria vida pessoal, um misto de autoexame e vertigem ególatra povoada por erotismo masculino convencional, alguma dose de amor verdadeiro mal vivido e o puro fluxo existencial sem sentido.

Não será surpresa se o livro marcar muitos de seus leitores por cenas e tiradas típicas do universo de Houellebecq — da moderada misantropia de Labrouste ao sexo grupal de sua namorada, passando pela figura de um turista alemão pedófilo na Normandia. Sua percepção da sociedade francesa (e ocidental) como um universo decadente, emasculado, derrotado por uma geração de líderes anódinos incapazes de defender seus povos, mas que morreriam pelo livre-comércio, já é parte de seu legado literário. Na visão do autor, o Ocidente é um grande e insípido supermercado, e isso é tudo o que o consenso liberal dos últimos quarenta anos pôde oferecer.

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Mas há algo raro, um tanto mais incomum, em Serotonina. Dificilmente um personagem da ficção contemporânea conseguiu ser, de maneira tão abrangente e condensada, um exemplar quase lírico de um tipo muito peculiar de derrota. Pois Serotonina é, sobretudo, um livro a respeito da derrota na vida. Não a derrota do desemprego, da pobreza, da exasperação social; não o fracasso existencial angustiante e intenso — apenas a derrota lenta, sem alardes, que ocupa pouco a pouco cada espaço vazio de significação da vida, e que não pode ser compensada nem mesmo pelo dinheiro e pelo consumo. Se a geração de Labrouste — os chamados kidults — provou que era possível estender indefinidamente uma adolescência infantilizada, o personagem também atesta como essa geração antecipa fracassos e derrotas mais amplos. E assim a literatura de Houellebecq se reafirma como um remédio que, embora tremendamente amargo, se faz necessário.

Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648

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