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Os artistas que ergueram os pincéis contra a ditadura e revolucionaram a produção nacional

Obra de Claudia Calirman conta como o cenário político influenciou a entrada do Brasil na onda das performances que dominava os anos 1970

Por Mariana Zylberkan
26 ago 2012, 11h59

Enquanto a produção musical, cinematográfica e teatral no Brasil era alvo constante de censura durante o período militar, as artes plásticas passaram ao largo do terror da perseguição policial. Isso não quer dizer, porém, que os artistas mantiveram seus pincéis e ideias intocados pelos anos de chumbo no país. Pelo contrário, nas décadas 1960 e 70, com exceção do período em que vigorou o Ato Institucional nº 5, a produção desse segmento cultural foi bastante profícua, e inclusive responsável por colocar o Brasil, pela primeira vez, no mapa das performances.

O período de restrições a uma série de direitos no Brasil coincidiu com uma mudança importante no cenário artístico internacional. No início dos anos 70, a pintura e a escultura deram lugar às performances no palco principal da expressão artística. “A arte saiu dos museus e foi para as ruas e até para os corpos dos artistas”, diz Claudia Calirman, especialista em história da arte que acaba de lançar o livro Brazilian Art Under Dictatorship (Arte Brasileira na Ditadura Militar, Duke University Press, 232 páginas, 24,95 dólares ou cerca de 50 reais o impresso simples e 89,95 dólares ou cerca de 180 reais a capa dura).

Capa do livro 'Brazilian Art Under Dictatorship'
Capa do livro ‘Brazilian Art Under Dictatorship’ (VEJA)

O livro é resultado de uma tese de doutorado. Carioca, Claudia mora desde 1989 em Nova York, onde atua como curadora e guia do Museum of Modern Art (Moma). Para retratar a produção feita no Brasil durante a ditadura, a especialista selecionou três artistas que revolucionaram a linguagem artística justamente para driblar as restrições impostas pelos militares. Antonio Manuel, Artur Barrio e Cildo Meirelles foram difefenciais por se apropriar de instrumentos presentes na sociedade, como cédulas, jornais e garrafas de refrigerante, para expressar sentimentos e opiniões a respeito do regime vigente.

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A publicação também enumera as exposições censuradas na época. Uma delas, a mostra Pré Bienal de Paris, prevista para abrir ao público em 29 de maio de 1969, por exemplo, foi fechada pelos militares antes da inauguração. O motivo foi a inclusão de uma foto do fotojornalista Evandro Teixeira, do Jornal do Brasil, que mostrava o tombo da moto de um oficial da Força Aérea Brasileira (FAB) durante desfile cívico. “Eles viram como uma provocação e, por causa de uma única imagem, toda a exposição foi suspensa”, diz Claudia.

Outro momento importante foi a performance improvisada de Antonio Manuel durante a abertura do salão do MAM-RJ, em 1970. Indignado por ter sido rejeitado na seleção, ele tirou as roupas e circulou pelos três andares do museu completamente nu. Sua obra era seu próprio corpo, que foi impedido de ser exposto no salão. “O museu foi fechado na mesma hora e foram todos correndo para a casa do crítico de arte Mario Pedrosa. Foi ele quem lançou a frase mais importante do período: ‘O que o Antonio Manuel fez foi o exercício experimental da liberdade’. O termo seria usado posteriormente para designar outras obras.”

Leia a seguir a entrevista concedida por Claudia Calirman ao site de VEJA.

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Em que foi baseada a escolha dos três artistas abordados? Todo artista que estava no Brasil fez alguma coisa. Então, precisei de um recorte. Escolhi três artistas que me permitiram falar das linguagens usadas no período. Um ponto comum entre eles é o fato de terem compartilhado linguagens que eram usadas internacionalmente. A questão do corpo, por exemplo, é representada pela obra de Antonio Manuel, que fica nu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro como uma forma de protesto contra a instituição, algo que, em seguida, se transforma numa manifestação política.

Em termos de linguagem, qual é o ponto comum entre eles? Tanto Claudio Manuel quanto Cildo Meirelles e Artur Barrio se apropriam de meios presentes na sociedade para expressar sua opinião. Antonio Manuel passou alguns meses na redação do jornal O Dia, com permissão do Ivan Chagas Freitas, filho de Antônio de Pádua Chagas Freitas, fundador da publicação. Nesse período, ele publicou dez páginas de jornal, inclusive a capa com a logomarca de O Dia, em que inseriu uma série de loucuras, como fotos dele nu e retratos da Lygia Pape com dentes de vampiro. Algumas centenas de exemplares foram realmente vendidas em banca. Então, a pessoa comprava o jornal pela manhã e levava a intervenção do artista. Os trabalhos de Cildo Meirelles também seguiam a linha da apropriação: ele usou garrafas de Coca-Cola e cédulas de dinheiro para criticar o capitalismo. Cildo carimbava as cédulas de cruzeiro com frases como “Quem matou Herzog?” e as colocava em circulação. A ideia era se infiltrar em brechas do regime. Eles eram uma espécie de hacker dos anos 60 e 70.

Como as obras se inseriam no contexto internacional das artes plásticas? É exatamente nessa época que o mundo inteiro muda, a arte sai da pintura e da escultura e vai para as ruas. Esses artistas estão atentos a isso e começam a trabalhar também essas novas linguagens, mas, como temos uma ditadura no Brasil, esse contexto político faz com que as artes tenham caráter mais político nesse período.

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Eles comungavam uma ideologia em comum? Todo mundo era contra a ditadura. Os trabalhos não são propriamente uma propaganda contra o regime, nenhum deles foi preso ou atuou como militante político, mas eles usavam a arte para falar da questão política da época. Barrio deixava trouxas feitas com sangue e ossos de animais nas ruas, esgotos e rios, como se fossem corpos dilacerados e ninguém, naquela época, sabia que se tratava de uma obra. A polícia encontrava essas trouxas e as levava para serem analisadas em laboratório. A obra provocava um certo susto, uma certa náusea.

Obra Situação de Artur Barrio
Obra Situação de Artur Barrio (VEJA)

O tema político se perpetuou na obra desses artistas após o fim da ditadura? Não, eles tinham necessidade de expressar o medo absoluto que as pessoas viviam na época e a autocensura. Não havia nenhum critério do que podia ser feito ou não nas artes. Tem um trabalho do Antonio Manuel, Soy Loco por Ti, que foi mostrado no Salão da Bússola, no MAM-RJ, em 1969, um general veio e disse que o pano preto era símbolo do anarquismo e a cama vermelha, do comunismo. Era uma coisa totalmente arbitrária. O crítico de arte Mario Pedrosa escreveu uma carta enorme em nome da Associação Internacional dos Críticos de Arte, pedindo uma definição da censura nas artes plásticas, o que nunca foi feito.

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Então, não havia uma censura claramente definida em relação às artes plásticas? As artes plásticas são menos visíveis, em termos de cultura de massa, que a música e a televisão, por exemplo. Isso protegeu os artistas de uma certa maneira. As prisões que aconteceram entre seus representantes nunca estavam atreladas a alguma obra, mas à militância política praticada por alguns deles.

Como essa geração influencia a relação arte versus política? Antes de 64, havia muitas manifestações políticas engajadas. Com o AI-5, as pessoas que faziam arte politizada foram presas e ficou impossível produzir nessa linha. Por isso, muitos trabalhos pós-AI-5 são efêmeros. Não sobrou quase nada daquela época.

A efemeridade é explicada pelo domínio da performance no período? Sim, hoje há uma grande discussão sobre como armazenar performances. Ao ser refeita, a performance perde o seu caráter espontâneo. O trabalho é resgatado apenas através de fotografias e vídeos e essa documentação passa a ser vendida como objeto de arte, mas a documentação em si não é a obra.

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Essas obras ainda são consideradas atuais? Eu fui cocuradora da exposição de Antonio Manuel na American Society, em Nova York, no ano passado, e o principal comentário das pessoas foi “Parece uma exposição de hoje”. É um trabalho de arte política que transcende o momento em que foi produzida. No movimento Occupy Wall Street, as pessoas trocavam notas de dólar com mensagens políticas e o Cildo Meirelles já fazia isso em 1970. Como linguagem, eles fizeram algo que é pertinente até hoje.

Obra Inserções em Circuitos Ideológicos Projeto Coca-Cola, de Cildo Meireles
Obra Inserções em Circuitos Ideológicos Projeto Coca-Cola, de Cildo Meireles (VEJA)

A ditadura foi, então, fértil para a arte brasileira? A ditadura não ajudou ninguém, é perigoso falar isso e alguém ter a ideia de instaurar uma nova ditadura para estimular as artes. Foi um período de muito medo, de pavor, a gente não sabe quão mais fértil poderia ter sido a produção nesses anos se não tivesse tanta autocensura. Os artistas produziam apesar desse momento de medo e não por causa dele. Houve um boicote enorme à Bienal de 1969, foi um fracasso porque ninguém veio. Várias iniciativas foram frustradas pela ditadura.

Como esse período marcou o trabalho desses artistas após a ditadura? A obra do Antonio Manuel, por exemplo, é bastante geométrica e abstrata, preserva a linguagem construtivista dos jornais usada por ele na época da ditadura, quando se apropriava da diagramação dos jornais para fazer sua arte. O Barrio continua fazendo instalações com materiais efêmeros, como pó de café e peixe. Quando participou da Documenta de Kassel, em 2002, ele protestou contra a curadoria do evento e escreveu na parede de sua sala, repleta de pó de café e paredes quebradas: “A curadoria é um mal desnecessário”. Ou seja, ainda existe provocação em seu trabalho. Cildo Meireles permanece como um artista conceitual que explicita preocupação social em seu trabalho.

A autora Claudia Calirman
A autora Claudia Calirman (VEJA)
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