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O silêncio dos inocentes

Exposição em SP celebra a vida e a obra de Paul Klee, pintor que imitava o olhar sem filtros das crianças para revelar as alegrias e os horrores do mundo

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 15 fev 2019, 07h00 - Publicado em 15 fev 2019, 07h00

Deprimido por não achar um jeito original de pintar, o suíço Paul Klee (1879-1940) teve uma iluminação ao redescobrir desenhos que fez quando criança. Em uma carta de 1903, proclamou: aqueles eram os trabalhos “mais significativos” que já havia criado. Sete anos mais tarde, Klee incluiu os rabiscos infantis em sua primeira exposição. Diz uma velha maldade usada para atacar artistas modernistas que qualquer pirralho seria capaz de emular suas obras. Antes que a tirada maliciosa se popularizasse, lá estava o modernista de primeira hora vestindo alegremente a carapuça. Diante dos 123 trabalhos da mostra Paul Klee — Equilíbrio Instável, que acaba de estrear no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, a questão volta inevitavelmente à tona: afinal, uma criança poderia ter pintado obras como as que ilustram esta reportagem?

O acervo vem do Zentrum Paul Klee, instituição que ocupa um prédio magnífico projetado pelo arquiteto italiano Renzo Piano nos arredores da cidade suíça de Berna, onde o artista cresceu e viveu os últimos anos. A exposição, programada para passar também pelo Rio e por Belo Horizonte, é a maior retrospectiva de Klee já realizada no Brasil. E não apenas pela extensão. Cobrindo seus passos evolutivos dos rabiscos infantis aos trabalhos finais, ela oferece um painel que não se esgota no artista: resume as causas que mobilizavam a avant-garde modernista e as tensões políticas de seu tempo. “Klee é visto como artista misterioso movido por uma irreverência infantil. Mas essa é só a superfície: sua personalidade complexa foge aos rótulos”, diz a curadora Fabienne Eggelhöfer.

DOCE MELANCOLIA – Klee em seu ateliê: artista celebrado por outros artistas (Culture Club/Getty Images)

Ao sabor dos trancos históricos do começo do século XX, a pintura modernista foi do céu da liberdade extrema ao inferno da perseguição por regimes totalitários. Klee talvez seja o exemplo mais acabado de enfant terrible que ganhou notoriedade (e dinheiro) com suas provocações, mas depois pagou um preço alto por elas. Antiacadêmico que tateou em busca de um estilo e espaço no mercado, ele finalmente se encontrou após tornar-se amigo do emigrado russo e mestre abstracionista Wassily Kandinsky (1866-1944) — de quem virou vizinho ao se estabelecer em Munique, na Alemanha. Com aquarelas indecisas, por assim dizer, entre os motivos abstratos e a figuração (e que influenciariam do catalão Joan Miró ao grafiteiro americano Keith Haring), Klee fez grande sucesso nos anos da I Guerra. Foi convocado para o Exército alemão, mas serviu num posto burocrático, o que lhe permitiu manter-se ativo. “Enquanto a maioria dos colegas lutava ou morria, Klee preenchia as paredes das galerias”, explica a curadora. Para ele, quando o mundo ia mal, nada melhor que a abstração para enlevar o público com cores aconchegantes.

Klee alcançou êxito comercial e prestígio para se tornar mestre da Bauhaus, a arrojada escola de arte e arquitetura alemã. Sua obra, enquanto isso, ganhava feições indefiníveis: ele flertava com vertentes como o cubismo ou a pintura geométrica, mas nunca a ponto de encaixar-se em padrões. A fluidez explica por que não se notabilizou como medalhões do tipo do espanhol Pablo Picasso. Mas fez dele um artista cultuado por outros artistas e intelectuais. É clássica a interpretação de um de seus muitos quadros sobre anjos enigmáticos, Angelus Novus, pelo filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940). Não sem alguma piração na maionese, Benjamin — que era dono da obra — enxergava o personagem como alegoria da História, a observar com horror os destroços do passado.

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FORÇA PRIMORDIAL – As aquarelas ‘Olho Vermelho’ (em cima, à esq.) e ‘Busto de uma Criança’ (em baixo, à esq.) e a colagem ‘Soldado’ (à dir.) — todas da década de 30: obras de cores aconchegantes e linhas simples produzidas em ritmo febril (Zentrum Paul Klee, Berna/Divulgação)

O próprio Klee experimentou (assim como o suicida Benjamin) os horrores da história. Nos anos 30, com a ascensão de Hitler ao poder, seus trunfos fizeram sua ruína. Figurou na infame exposição da “arte degenerada” promovida pelos nazistas, que desejavam substituir a “decadente” pintura moderna pelo neoclassicismo estéril. Klee foi acusado de ser judeu — e teve de provar que não era. Expulso da Alemanha, voltou para Berna em 1933, e emendou o exílio com outra tragédia: a descoberta de uma doença degenerativa fatal. Passou o fim da vida produzindo de forma febril: só em 1939, foram 1 253 trabalhos.

É quando sua busca pela pureza atinge o ápice: os anjos humanizados e os rabiscos primitivos cedem lugar a vagas formas orgânicas e corpos desmembrados, como na natureza-morta achada no cavalete quando morreu. Qualquer criança seria capaz de emular as cores intuitivas e linhas simples de Paul Klee — mas raros artistas souberam usar essa força primordial para expor a alegria trágica da existência.

Publicado em VEJA de 20 de fevereiro de 2019, edição nº 2622

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