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O poder por trás do poder

'Vice' funde sátira e reportagem para investigar como Dick Cheney se tornou o vice-presidente americano mais poderoso, temido — e sinistro

Por Isabela Boscov Atualizado em 1 fev 2019, 21h11 - Publicado em 1 fev 2019, 07h00

Em 1962, o operário da companhia elétrica faz zigue-zagues com seu carro em uma estrada do Estado do Wyoming — e, quando a polícia o para, ele desaba no chão, de tão bêbado que está. Um intervalo considerável — 37 anos — e esse mesmo personagem, agora um homem grisalho e corpulento, testa a temperatura da água em um encontro com o candidato presidencial do Partido Republicano: a Vice-Presidência, afirma ele, é um cargo simbólico que não lhe interessa muito; como CEO de um gigante do petróleo, ele já tem muito mais poder do que aquele que a ala leste da Casa Branca poderia lhe oferecer. Mas… e se fosse possível fazer um arranjo que pusesse sob sua alçada alguns setores mais aborrecidos do governo? Por exemplo, a burocracia. A estrutura militar. A energia. As relações exteriores. Aí, quem sabe? Mastigando uma coxa de galinha, o candidato presidencial faz cara de espanto — não porque o seu potencial vice-presidente está propondo arrancar-lhe das mãos áreas estratégicas no comando da nação, mas porque, ora, como ninguém teve antes uma ideia assim tão boa? Negócio fechado, diz George W. Bush (Sam Rockwell) a Dick Cheney (Christian Bale), o protagonista cuja trajetória é, em Vice (Estados Unidos, 2018), já em cartaz no país, objeto ao mesmo tempo de investigação e de caricatura: por qual caminho aquele rapaz sem futuro, que se metia em brigas de bar e duas vezes fora expulso da universidade, se tornou, com a eleição americana de 2000 e a reeleição de Bush em 2004, o vice-presidente mais poderoso, calculista e temido da história dos Estados Unidos?

Vice, que chega com oito indicações de peso ao Oscar, é fruto da curiosidade e do espírito provocador do mesmo time que, em 2015, transformou a quebradeira financeira de 2008 em um dos filmes mais divertidos, e mais elucidativos, do ano. Com A Grande Aposta, o diretor Adam McKay, que antes fazia comédia satírica sem compromisso (por exemplo, O Âncora — A Lenda de Ron Burgundy, de 2014), descobriu a carga extra de energia que vem com a vinculação aos acontecimentos reais. McKay e seu parceiro criativo, sócio e produtor, o comediante Will Ferrell, têm um jeito naturalmente aloprado de enxergar o mundo. E que mundo poderia ser mais aloprado que o do mercado financeiro americano pré-2008, com suas montanhas de subprimes e créditos podres? Aparentemente, porém, existe um universo regido por leis ainda mais esotéricas — o da política de altíssimo cacife, em sua colusão crescente com os interesses corporativos e com o comportamento faccionário de alguns setores da imprensa.

FORÇA MOTRIZ - Amy Adams, como Lynne Cheney: do desejo legítimo de controle à obsessão pelo poder total (Matt Kennedy/Annapurna Pictures/.)
(Arte/VEJA)

Em toda a tradição do cinema de mergulhar na investigação política, celebrizada em 1976 por Todos os Homens do Presidente, esta é uma constante: a tentativa de trazer a público uma versão dos fatos que foi suprimida, ou ainda de alargar o campo de visão do espectador com novas evidências, novos dados e uma leitura mais abrangente deles. Não se trata de substituir o trabalho da imprensa, argumenta McKay. Sem este, diz ele, seria impossível fazer um filme como Vice, que se vale das apurações persistentes de um sem-número de repórteres ao longo dos anos. O cinema, entretanto, pode escapar de limitações momentâneas ou conjunturais que às vezes se impõem sobre o jornalismo. Por exemplo, as acusações de antipatriotismo com que o governo americano encostou a imprensa na parede durante a cobertura da Guerra do Iraque (declarada por pressão de Cheney sob o pretexto, que depois se demonstrou ser fictício, das armas de destruição em massa que o ditador Saddam Hussein teria em seu poder). Ou, ainda, aquilo que no jargão é conhecido como o “ciclo de 24 horas”: quanto mais o jornalismo é consumido como uma forma de entretenimento, maior é a necessidade de alimentar a engrenagem com uma nova manchete de impacto a intervalos curtos. Se o ciclo de 24 horas focaliza a árvore, dizem McKay e outros cineastas (veja o quadro abaixo), o cinema pode, às vezes, tentar mostrar a floresta.

Vice argumenta — com bons argumentos, embora nem sempre perfeitamente isentos — que esse é o mundo que Dick Cheney contribuiu para legar ao presente graças ao impulso inesperado dos atentados de 11 de setembro de 2001 (inclusive no que toca à cobertura jornalística, com seu fomento da conservadora e não raro estridente Fox News). Naquela primeira ocasião em que o filme o apanha, porém, com a camisa suja de vômito e os olhos arroxeados pela ressaca, Cheney ainda é o sujeito fadado a dar em nada. Sua mulher, Lynne (Amy Adams), o tira dessa rota com um ultimato. Ela já tem pai alcoólatra, diz, e não precisa de um marido com o mesmo problema. Não quer também ser impotente, insignificante e viver à mercê do que a vida manda. Quer ter controle sobre si. E, se esse controle é vedado a uma mulher (vale lembrar que se está aí no início da década de 60), que Cheney o conquiste, para que possam exercê-lo juntos — ou ele então que se mande.

Esse é, talvez, o aspecto mais interessante de Vice. Por meio da atuação soberba de Christian Bale, Amy Adams, Sam Rockwell, Steve Carell — como o mentor de Cheney e depois ministro da Defesa do governo Bush, Donald Rumsfeld — e tantos outros, McKay dedica-se sobretudo a iluminar os vários estágios de uma transubstanciação. À medida que o desejo legítimo de Lynne Cheney — que fala, naquele momento, por qualquer outro ser humano — se materializa, a própria natureza dele vai se transformando. Do controle ao poder, e do poder ao poder absoluto, essa é uma busca que exige deixar pelo caminho princípios, amarras, considerações, laços valiosos (a certa altura, até uma filha muito querida é sacrificada). Tanta coisa se vai que chega o momento em que não resta quase nada da pessoa que proferiu aquele desejo. Nesse sentido, Dick Cheney ou qualquer outro personagem político serão sempre as árvores de uma grande floresta que desde Macbeth se tenta mapear, sem que nunca se chegue ao seu fim. Também a obrigação de tentar, porém, não termina jamais.


Do noticiário para a tela

Alguns exemplos notáveis de como a política e a economia vêm fornecendo matéria-prima para dramatizações — e reinvestigações — de eventos recentes

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Recontagem
2008

Recount (HBO) 2008 TV Movie - Shown from left: Ed Begley Jr., Kevin Spacey - Directed by Jay Roach Credito: Gene Page/HBO
(Gene Page/HBO)

Pioneira no filão, a HBO chamou o diretor Jay Roach (da série Austin Powers, por incrível que pareça) para reconstituir o fiasco da eleição presidencial de 2000, quando os votos da Flórida foram postos em xeque e Al Gore assistiu à vitória de seu rival, George W. Bush


Grande Demais para Quebrar
2011

(//HBO)

O diretor Curtis Hanson, de Los Angeles — Cidade Proibida, encenou para (de novo) a HBO os bastidores do governo na crise financeira de 2008, com destaque para as ações do secretário do Tesouro (vivido por William Hurt, na foto) e do diretor do Fed, o Banco Central americano


A Hora Mais Escura
2012

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(Jonathan Olley/Universal Pictures/.)

A diretora Kathryn Bigelow e seu roteirista, Mark Boal, fizeram a própria pesquisa para complementar os dados disponíveis e retraçar a década de caçada de uma agente da CIA (Jessica Chastain, na foto) a Osama bin Laden, desde o 11 de Setembro até seu assassinato por Seals, em 2011


A Grande Aposta
2015

(Jaap Buitendijk/Paramount Pictures/.)

Um castelo de cartas que desabou como um dominó: as maracutaias do mercado financeiro que resultaram na explosão mundial de 2008 ficam fascinantes — e tragicamente divertidas — na visão de Adam McKay, de Vice, que recorre até a loiras na banheira para explicar como a bomba foi armada


The Looming Tower
2018

(Amazon Prime Video/.)

A minissérie da plataforma de streaming Hulu baseia-se no livro-reportagem homônimo sobre a ascensão de Osama bin Laden, mas concentra-se nas rivalidades internas que toldaram o julgamento da CIA e do FBI a ponto de dados cruciais de inteligência terem passado despercebidos

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Brexit
2019

(//HBO)

Os termos da eventual saída do Reino Unido da União Europeia continuam dando pano para mangas, mas o Channel Four inglês e a HBO já começaram o rescaldo, mirando a figura e as motivações do principal estrategista político do referendo popular de 2016 (Benedict Cumberbatch, no centro)

 

 

Publicado em VEJA de 6 de fevereiro de 2019, edição nº 2620

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