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O paradoxo do mandarim

O jardim das aflições ocasionadas pelo cultivo hedonista do ódio

Por João Cezar de Castro Rocha
Atualizado em 22 mar 2019, 07h00 - Publicado em 22 mar 2019, 07h00

– Em 1880, Eça de Queirós publicou O Mandarim. Narrada em primeira pessoa, a história de Teodoro lida com um desafio ético mais atual hoje do que no século XIX.

– O universo digital propiciou o advento de tipos novos: o guerrilheiro do éter, o narciso do próprio ódio, o alpinista do planalto, o gestor de espectros, o latifundiário de espantalhos, o autoproclamado “tudo eu mesmo”, o desconstrutor do nada e de coisa alguma — a rodovia transamazônica do analfabetismo ideológico.

– Freud pensou o ato falho como um lapsus linguae: momento excepcional de emergência do inconsciente na fala cotidiana. Contudo, e se o discurso inteiro for uma sucessão imoderada de falhas?

– O pintor e escritor Edward Lear foi um cultor genial da nonsense poetry. Mais discreto, Carlos Bolsonaro contentou-se em criar o “nonsense tuíte”; arte na qual alcança um nível raro de sofisticação, especialmente no emprego revolucionário de modestas vírgulas — por, ele, convertidas em signos, épicos, de incontida, beligerância.

– O amanuense Teodoro levava uma vida pacata e monótona. Ainda assim o Diabo resolveu tentá-lo — o capiroto, o cramulhão, o que não se diz é mesmo um tinhoso. Ao folhear um livro vetusto, encontrou a vereda moral que definiu seu dilema: “No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha”.

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– É clara a lição das coisas: não há alegria no jardim das aflições ocasionadas pelo cultivo hedonista do ódio — a prova dos nove do analfabetismo ideológico.

– Teodoro tocou a campainha e se descobriu um dos homens mais patacudos do mundo. Afinal, ele nem sequer poderia imaginar quem seria o mandarim condenado à morte por seu gesto. O anonimato e a distância autorizam o abjeto? Ou seja, liderar linchamentos virtuais e jogar lenha na fogueira alheia?

– Os guerrilheiros do éter tocam o tempo todo campainhas as mais diversas em troca de likes e, “por favor, não se esqueçam da inscrição no meu canal, da minha livraria com descontos especiais e dos cursos on-line”. Os militantes do ódio vivem num Brasil paralelo. Cidadãos de uma Lilliput mental, eles substituem a lógica pela hipérbole, a argumentação pelo baixo calão, a escuta do outro pelo propósito de eliminá-lo.

– Teodoro termina a novela arrependido de sua escolha. O consolo que lhe resta é o desencanto com a humanidade: “Nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões”. Será mesmo? Pelo menos o leitor de Eça de Queirós talvez pense duas vezes. Só não pensa quem é governado pelos dedos: universo digital, pois.

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– Hora de afirmar: basta! Esquerda e direita precisam retomar o diálogo não apesar mas precisamente em virtude de suas diferenças: se o mundo não cabe em mônadas, quanto mais em bolhas.

– Vamos dar o primeiro passo?

Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627

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