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O inimigo mora aqui

O diretor Jordan Peele, de 'Corra!', radicaliza em 'Nós' a sua combinação de ótimo entretenimento com comentário social penetrante

Por Isabela Boscov Atualizado em 22 mar 2019, 07h00 - Publicado em 22 mar 2019, 07h00

Na infância, em uma noite do verão de 1986, Adelaide sofreu um trauma terrível, cujo real teor não revelou então a ninguém — nem aos pais nem à psiquiatra que a avaliou (o espectador, porém, logo é inteirado do que se passou). Agora, de volta com o marido e o casal de filhos à mesma casa de praia para as férias, Adelaide (Lupita Nyong’o) não consegue afastar as lembranças ruins do passado. Pressente que as mesmas circunstâncias se estão armando novamente, e que as coincidências que vê por toda parte são na verdade avisos: o velho que os paramédicos estão socorrendo na rua era o jovem que, naquela noite fatídica, ela viu carregando uma placa que exibia um versículo bíblico (Jeremias 11:11 — “Por isso, assim diz o Senhor: ‘Trarei sobre eles uma desgraça da qual não poderão escapar. Ainda que venham a clamar por mim, não os ouvirei’.”). O número 11:11, aliás, persegue Adelaide em relógios, placas de carro e outros lugares inesperados. Gabe (Winston Duke), seu marido tranquilão, não compreende o porquê de tanto mal-estar — até o momento em que uma família se posta, imóvel, na entrada da casa, e Gabe percebe que o pai, a mãe e o casal de filhos que estão ali fora, no escuro, são duplos da sua família, idênticos e ainda assim muito diferentes: animalescos, cruéis, violentos e, acima de tudo, estranhos. A partir daí, Nós (Us, Estados Unidos, 2019), já em cartaz no país, toma rumos inesperados, muito mais do que o resumo acima possa sugerir. O diretor Jordan Peele, porém, faz o que se esperava dele: depois do extraordinário sucesso crítico e comercial de sua estreia, Corra!, ele depura e radicaliza sua combinação de entretenimento com comentário social penetrante.

Os duplos e também os impostores são um recurso recorrente no terror e no suspense porque nos causam reações confusas e primordiais: deparar com uma cópia de origem misteriosa equivale a mergulhar de forma abrupta no inconsciente e encontrar ali um “eu” até então ignorado. Os duplos de Nós são, além disso, inimigos de seus originais: invadem a casa deles, fazem-nos reféns e tentam destruí-los, comunicando-se entre si com grunhidos e urros. Apenas o duplo de Adelaide é capaz de falar, mas o faz como se nunca antes houvesse articulado fonemas e estes fossem objetos estranhos em sua garganta.

SOCIÓLOGO POP - Peele: suspense, estilo e reflexão (Claudette Barius/Universal Pictures/Divulgação)

O que ela narra é uma história horrível, de uma vida vivida como um reflexo distorcido daquela que Adelaide teve — privação no lugar de abundância, dor no lugar de alegria e um rancor raivoso por tudo o que foi obrigada a observar de longe, sem nunca tocar. Em um desempenho formidável — com os nervos em pane como Adelaide, e enregelante como sua cópia —, Lupita Nyong’o cristaliza o tema que Jordan Peele vai dobrar e desdobrar em formatos imprevistos na hora e meia seguinte: o de uma multidão silenciosa e ressentida, farta de ver negados os direitos que seus iguais usufruem. “Somos uma cultura de pessoas que têm medo do que vem de fora, do invasor, do que é diferente. Nós, porém, trata do fato de que nós mesmos somos nossos piores inimigos”, diz o diretor.

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Peele teve uma carreira de muito êxito como comediante, na série Madtv e na dupla formada com o colega Keegan-Michael Key (um dos quadros mais divertidos criados por eles era o do “tradutor de raiva” de Barack Obama: enquanto Peele imitava as falas pausadas e ponderadas do ex-presidente, Key, o “tradutor”, manifestava a impaciência e exasperação que o estilo sereno escondia). No entanto, em 2017, com Corra!, ele decidiu passar à fase com que sonhava desde a adolescência: a de cineasta voltado para o horror e o fantástico, gêneros em que transita com desenvoltura e conhecimento (seu próximo projeto é uma refeitura da série antológica Além da Imaginação) e nos quais pega o espectador desprevenido com deliciosos momentos de comédia aflitiva. Peele fez Corra! com a verba microscópica de 4,5 milhões de dólares; arrecadou 255 milhões na bilheteria mundial e terminou aquele ano em 15º na bilheteria americana, competindo com filmes cujo orçamento, sem exceção, era mais de quarenta vezes maior que o seu.

O terror é o gênero em que são mais comuns esses exemplos ocasionais de relação custo-benefício drástica. Corra! é, ainda assim, um caso à parte: um exercício notável de estilo — o suspense de Alfred Hitchcock é a inspiração nítida, e assumida — cujo propósito não é o estilo em si, mas sim provocar reflexões. Peele não apenas dissecava os resquícios de racismo da classe média branca e progressista, como ia bem mais longe, argumentando que a correção política pode funcionar como uma mutação avançada do preconceito, destinada a encobrir sem jamais sanar — uma observação cujo discernimento ultrapassa com folga o que se vê na média da produção acadêmica e nas bandeiras dos movimentos identitários.

IMPLOSÃO - Donald Glover, em cena de Atlanta: debate radical — e lúcido (Guy D'Alema/FX/Divulgação)

Peele faz parte de uma tendência que se pode definir como uma nova vanguarda americana de artistas negros, que guarda certa semelhança, como fenômeno, com outra, que sacudiu a criação americana a partir da década de 50, a dos escritores judeus como Philip Roth e Saul Bellow — pessoas que ao mesmo tempo fazem parte do establishment e estão fora dele, numa posição que lhes confere experiências abrangentes e oportunidades únicas de observação. Aliás, assim como outros artistas negros que compõem essa nova vanguarda, Peele demonstra ambivalência em relação às doutrinas de identidade: nos raps de Kendrick Lamar, por exemplo, ou na extraordinária Atlanta, a série criada pelo ator Donald Glover, detecta-se a irritação com essa vontade de codificar atitudes com base na cor — por ser simplista na sua visão do tecido social, e sufocante na maneira como pressupõe que os indivíduos dentro de um grupo devam ser homogêneos nas experiências e nas aspirações. Em um episódio particularmente ferino de Atlanta, intitulado B.A.N., Glover demole esse tipo infantil de sociologia — e, encarnando sua outra persona, a do rapper Childish Gambino, ele pôs o debate racial em polvorosa no ano passado, com o clipe de This Is America — em que, numa encenação altamente simbólica, argumenta como é complicado o enredo que se desenrola em seu país. (Vale notar, também, como é eficiente o dispositivo de entrega das reflexões desses artistas: obras pop de apelo amplo e imediato, e de qualidade notável.)

Também a encenação de Nós é repleta de símbolos, alguns facilmente decifráveis, outros de interpretação mais subjetiva (prepare-se para longas discussões com os amigos a respeito de coelhos). E também ela implode os parâmetros habituais desses debates: há, sim, questões de raça em jogo em Nós. Mas as questões do filme incluem o materialismo, a esterilidade espiritual ou afetiva desse estilo de vida, a força matriarcal das mulheres — e, claro, a profunda divisão que se operou nos Estados Unidos e no mundo na última década e meia, a qual Jordan Peele investiga desde a escolha de uma palavrinha crucial: não “eles”, como seria natural referirmo-nos a esses duplos, mas “nós”.

Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627

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