O inimigo mora aqui
O diretor Jordan Peele, de 'Corra!', radicaliza em 'Nós' a sua combinação de ótimo entretenimento com comentário social penetrante
Na infância, em uma noite do verão de 1986, Adelaide sofreu um trauma terrível, cujo real teor não revelou então a ninguém — nem aos pais nem à psiquiatra que a avaliou (o espectador, porém, logo é inteirado do que se passou). Agora, de volta com o marido e o casal de filhos à mesma casa de praia para as férias, Adelaide (Lupita Nyong’o) não consegue afastar as lembranças ruins do passado. Pressente que as mesmas circunstâncias se estão armando novamente, e que as coincidências que vê por toda parte são na verdade avisos: o velho que os paramédicos estão socorrendo na rua era o jovem que, naquela noite fatídica, ela viu carregando uma placa que exibia um versículo bíblico (Jeremias 11:11 — “Por isso, assim diz o Senhor: ‘Trarei sobre eles uma desgraça da qual não poderão escapar. Ainda que venham a clamar por mim, não os ouvirei’.”). O número 11:11, aliás, persegue Adelaide em relógios, placas de carro e outros lugares inesperados. Gabe (Winston Duke), seu marido tranquilão, não compreende o porquê de tanto mal-estar — até o momento em que uma família se posta, imóvel, na entrada da casa, e Gabe percebe que o pai, a mãe e o casal de filhos que estão ali fora, no escuro, são duplos da sua família, idênticos e ainda assim muito diferentes: animalescos, cruéis, violentos e, acima de tudo, estranhos. A partir daí, Nós (Us, Estados Unidos, 2019), já em cartaz no país, toma rumos inesperados, muito mais do que o resumo acima possa sugerir. O diretor Jordan Peele, porém, faz o que se esperava dele: depois do extraordinário sucesso crítico e comercial de sua estreia, Corra!, ele depura e radicaliza sua combinação de entretenimento com comentário social penetrante.
Os duplos e também os impostores são um recurso recorrente no terror e no suspense porque nos causam reações confusas e primordiais: deparar com uma cópia de origem misteriosa equivale a mergulhar de forma abrupta no inconsciente e encontrar ali um “eu” até então ignorado. Os duplos de Nós são, além disso, inimigos de seus originais: invadem a casa deles, fazem-nos reféns e tentam destruí-los, comunicando-se entre si com grunhidos e urros. Apenas o duplo de Adelaide é capaz de falar, mas o faz como se nunca antes houvesse articulado fonemas e estes fossem objetos estranhos em sua garganta.
O que ela narra é uma história horrível, de uma vida vivida como um reflexo distorcido daquela que Adelaide teve — privação no lugar de abundância, dor no lugar de alegria e um rancor raivoso por tudo o que foi obrigada a observar de longe, sem nunca tocar. Em um desempenho formidável — com os nervos em pane como Adelaide, e enregelante como sua cópia —, Lupita Nyong’o cristaliza o tema que Jordan Peele vai dobrar e desdobrar em formatos imprevistos na hora e meia seguinte: o de uma multidão silenciosa e ressentida, farta de ver negados os direitos que seus iguais usufruem. “Somos uma cultura de pessoas que têm medo do que vem de fora, do invasor, do que é diferente. Nós, porém, trata do fato de que nós mesmos somos nossos piores inimigos”, diz o diretor.
Peele teve uma carreira de muito êxito como comediante, na série Madtv e na dupla formada com o colega Keegan-Michael Key (um dos quadros mais divertidos criados por eles era o do “tradutor de raiva” de Barack Obama: enquanto Peele imitava as falas pausadas e ponderadas do ex-presidente, Key, o “tradutor”, manifestava a impaciência e exasperação que o estilo sereno escondia). No entanto, em 2017, com Corra!, ele decidiu passar à fase com que sonhava desde a adolescência: a de cineasta voltado para o horror e o fantástico, gêneros em que transita com desenvoltura e conhecimento (seu próximo projeto é uma refeitura da série antológica Além da Imaginação) e nos quais pega o espectador desprevenido com deliciosos momentos de comédia aflitiva. Peele fez Corra! com a verba microscópica de 4,5 milhões de dólares; arrecadou 255 milhões na bilheteria mundial e terminou aquele ano em 15º na bilheteria americana, competindo com filmes cujo orçamento, sem exceção, era mais de quarenta vezes maior que o seu.
O terror é o gênero em que são mais comuns esses exemplos ocasionais de relação custo-benefício drástica. Corra! é, ainda assim, um caso à parte: um exercício notável de estilo — o suspense de Alfred Hitchcock é a inspiração nítida, e assumida — cujo propósito não é o estilo em si, mas sim provocar reflexões. Peele não apenas dissecava os resquícios de racismo da classe média branca e progressista, como ia bem mais longe, argumentando que a correção política pode funcionar como uma mutação avançada do preconceito, destinada a encobrir sem jamais sanar — uma observação cujo discernimento ultrapassa com folga o que se vê na média da produção acadêmica e nas bandeiras dos movimentos identitários.
Peele faz parte de uma tendência que se pode definir como uma nova vanguarda americana de artistas negros, que guarda certa semelhança, como fenômeno, com outra, que sacudiu a criação americana a partir da década de 50, a dos escritores judeus como Philip Roth e Saul Bellow — pessoas que ao mesmo tempo fazem parte do establishment e estão fora dele, numa posição que lhes confere experiências abrangentes e oportunidades únicas de observação. Aliás, assim como outros artistas negros que compõem essa nova vanguarda, Peele demonstra ambivalência em relação às doutrinas de identidade: nos raps de Kendrick Lamar, por exemplo, ou na extraordinária Atlanta, a série criada pelo ator Donald Glover, detecta-se a irritação com essa vontade de codificar atitudes com base na cor — por ser simplista na sua visão do tecido social, e sufocante na maneira como pressupõe que os indivíduos dentro de um grupo devam ser homogêneos nas experiências e nas aspirações. Em um episódio particularmente ferino de Atlanta, intitulado B.A.N., Glover demole esse tipo infantil de sociologia — e, encarnando sua outra persona, a do rapper Childish Gambino, ele pôs o debate racial em polvorosa no ano passado, com o clipe de This Is America — em que, numa encenação altamente simbólica, argumenta como é complicado o enredo que se desenrola em seu país. (Vale notar, também, como é eficiente o dispositivo de entrega das reflexões desses artistas: obras pop de apelo amplo e imediato, e de qualidade notável.)
Também a encenação de Nós é repleta de símbolos, alguns facilmente decifráveis, outros de interpretação mais subjetiva (prepare-se para longas discussões com os amigos a respeito de coelhos). E também ela implode os parâmetros habituais desses debates: há, sim, questões de raça em jogo em Nós. Mas as questões do filme incluem o materialismo, a esterilidade espiritual ou afetiva desse estilo de vida, a força matriarcal das mulheres — e, claro, a profunda divisão que se operou nos Estados Unidos e no mundo na última década e meia, a qual Jordan Peele investiga desde a escolha de uma palavrinha crucial: não “eles”, como seria natural referirmo-nos a esses duplos, mas “nós”.
Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627
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