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Novos inimigos do povo

Outrora ouvidos com respeito na arena política, intelectuais e artistas perderam muito de seu prestígio com a ascensão do populismo e dos “influenciadores”

Por Rodrigo de Lemos*
Atualizado em 21 dez 2018, 07h00 - Publicado em 21 dez 2018, 07h00

“O poder popular não precisa mais de intermediação”, declarou Jair Bolsonaro durante sua diplomação. “As novas tecnologias permitiram uma relação direta entre o eleitor e seus representantes.” Não faltam imprecisões nessas frases, que não causariam estranhamento na boca de certa esquerda. Quem seriam os responsáveis por essa intermediação entre o eleitor e seus representantes, supostamente ultrapassada nas democracias digitais? E quem seria esse povo “empoderado”, enfim em contato aparentemente direto com a classe política pela internet? A ideia de povo que parece tentar o coração do presidente eleito não está longe da que habita o dos chavistas ou o dos “coletes amarelos” franceses. Trata-se não de uma pluralidade, de um conjunto de atores com interesses diversos e conflitantes, a ser conciliados por consensos políticos necessariamente temporários. O presidente eleito parece imaginar o povo como um ente único dotado de uma personalidade, de uma vontade e de um poder próprios. São as famosas maiorias a que devem se curvar as minorias ou desaparecer, evocadas por Bolsonaro em discurso na Paraíba.

Nessa visão, os mediadores entre a vontade popular e seus representantes estão sempre a um passo de se converter em opositores da democracia. No sistema liberal, a função de profissões como a jurídica e a intelectual é, com efeito, estabelecer distâncias entre as decisões dos governantes e os anseios da “maioria sólida”. O dramaturgo Henrik Ibsen tratou disso em Um Inimigo do Povo. Na peça, publicada em 1882, o Dr. Stockmann se ergue contra a massa de cidadãos ansiosos por encobrir a contaminação dos banhos públicos que asseguram sustento a uma cidadezinha norueguesa. O herói de Ibsen representa esse poder do intelectual para filtrar — quando não contrariar — a opinião popular com base em evidências científicas, em preceitos legais ou em preocupações inapreensíveis pelo radar do sentimento majoritário (por definição, o caso dos direitos de minorias). A peça mostra como, em um sistema majoritário, paira sobre as elites da palavra a acusação de abusar desse poder e de trair o interesse unânime do povo em favor de uma suposta agenda própria.

“A mídia eletrônica, na segunda metade do século XX, provocou deslocamentos na posição do intelectual. Terminava a era heroica dos esgrimistas da palavra”

No novo cenário constatado por Bolsonaro, essa suspeita sobre o intelectual tende ao acirramento — o que é importante não apenas para essa classe, mas para o funcionamento democrático. A linguagem técnica do especialista almeja um máximo de precisão para articular as questões inerentes a uma disciplina. A do intelectual pretende formular para um público amplo os impasses e as tendências de um momento histórico — uma tarefa incontornável em uma democracia, cujo vigor se mede pela liberdade da discussão de tudo por muitos.

As armas do intelectual foram tradicionalmente a palavra impressa e os gêneros criados após sua invenção, no século XV. Antes mesmo do advento da democracia moderna, os Ensaios (1580), de Michel de Montaigne, não só inauguram um gênero literário como prenunciam uma nova maneira de existir em sociedade. O crítico alemão Erich Auerbach observou que Montaigne diferia dos sábios da Renascença, teólogos ou filólogos escrevendo para seus pares. O ensaio de Montaigne anteciparia o surgimento do público culto, leigo e não especializado. Trata-se de um gênero que se presta a uma variedade de assuntos, dos mais específicos aos mais gerais e suscetíveis de influir na vida coletiva. Significativamente, foi ao ensaio que expoentes do liberalismo depois vieram a recorrer para desenvolver sua visão de sociedade — é o caso de Voltaire em sua defesa da liberdade de consciência ou da crítica à escravidão por Ralph Waldo Emerson ou por Joaquim Nabuco.

A difusão da mídia eletrônica, na segunda metade do século XX, já havia provocado deslocamentos importantes na posição do intelectual. Terminava a era heroica dos esgrimistas da palavra impressa, como Émile Zola, opondo-­se ao antissemitismo no caso Dreyfus (1894-1906), ou o romancista católico François Mauriac, denunciando a tortura durante a Guerra da Argélia (1954-1962). Por certo, grandes ensaístas e intelectuais públicos continuaram existindo. Ainda assim, na geleia geral da cultura televisiva, sua voz entrou em competição com o alarido das celebridades. A palavra não precisava mais ser impressa. Precisava ser dita em frente à câmera, com certas qualidades de charme ou de convicção. A concorrência com os famosos era desleal. Atores, esportistas, cantores populares — indiferenciados de escritores ou de filósofos —, todos eram a mesmo título formadores de opinião. Os atributos físicos e comportamentais dos primeiros asseguravam a eles inclusive alguma vantagem em uma cultura da imagem.

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“O atual desprestígio relativo de Chico e Caetano não se deve só ao desgaste do tempo nem a opiniões impopulares. É o fim de uma era”

Os intelectuais que buscavam influência mimetizaram essas novas formas de prestígio cultural para disputar a atenção do público. Foram as fórmulas bombásticas pronunciadas em talk shows que, no fim dos anos 70, promoveram Bernard-Henri Lévy e os nouveaux philosophes. Também ocorreu que personalidades da cultura popular fossem chamadas ao lugar de intelectuais. Assim se deu com as opiniões onipresentes de Chico Buarque ou de Caetano Veloso — para desgosto de figuras tradicionais da palavra impressa, como José Guilherme Merquior, que chegou a qualificar Caetano Veloso de “pseudointelectual de miolo mole” (o que divertiu o próprio Caetano).

O atual desprestígio relativo de Chico Buarque e de Caetano Veloso em certos meios nas redes sociais não se deve somente ao desgaste do tempo e da celebridade, nem à impopularidade dos seus engajamentos políticos. É uma era que se encerra. Assim como na época de domínio indisputado da palavra impressa, havia na mídia eletrônica uma verticalidade e uma divisão mais ou menos clara de papéis: o produtor do conteúdo, o reprodutor, o consumidor. Isso permitiu, inclusive, a Chico Buarque e a Caetano Veloso criar música popular de alto nível, na fronteira com a cultura erudita.

Sem apagar totalmente as situações anteriores, a internet favorece uma horizontalidade radical da palavra, como numa grande seção “Cartas do leitor”, agora sem formas nem freios. Um mesmo indivíduo pode ocupar esses três papéis quase de modo simultâneo. Daí que cresça a hostilidade às classes que falavam e que escreviam publicamente. Estas teriam se tornado elites desnecessárias para que o cidadão forme opinião. Mesmo os intelectuais com pretensões a exercer influência moldam hoje sua palavra pela linguagem crua e pelo ritmo imediato das redes.

É por isso que youtubers intelectuais contemporâneos misturam comentário político-cultural a uma língua vulgarizada expressamente com vistas ao impacto nas novas mídias. A ideia é sedutora. Já se prometeu com ela uma saudável renovação do debate, uma fuga ao formalismo da academia, até mesmo uma restauração da alta cultura. Ainda assim, podem-se separar linguagem e cultura dessa maneira? O efeito benéfico da cultura não residiria tanto naquilo que se diz quanto numa certa qualidade da palavra, resistente à sua simplificação visando à propagação de uma ideia em memes e em vídeos de um minuto?

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Não se pode dizer que essa simplificação tenha fracassado. Personalidades do Facebook e do Twitter surgem aos seus seguidores como fenômenos intelectuais. Mas nada é mais duvidoso. A importância real de um escritor se revela apenas no tempo longo. O certo é que essas figuras conseguiram se consolidar como fenômeno da comunicação. Hoje são influenciadores digitais entre outros, capazes de imprimir certo tom ao discurso tanto em grupos menos escolarizados quanto entre os filhos da classe média culturalmente deserdada.

É nesse sentido que a frase na diplomação de Bolsonaro tem algo de enganador. Ela leva a crer que as mediações deixaram de existir porque os mediadores não falam mais como antes. Em política, isso pode ser grave. A sensação de um elo imediato entre o povo e o governante abre espaço à manipulação. O discurso do líder parece tão mais autêntico quanto mais se vende, desde o princípio e por sua própria forma, como diretamente representativo dos sentimentos do cidadão. É como se este falasse pela boca do governante e, ao ouvir a própria voz na do outro, se convencesse de pensar o que escuta. Donald Trump e Recep Erdogan servem-se desse mecanismo na sua luta contra as elites cosmopolitas nos Estados Unidos e na Turquia.

Quanto aos influenciadores intelectuais da internet, passaram os últimos anos denunciando a traição dos clérigos (em referência a um ensaio de Julien Benda contra os intelectuais engajados). Com isso, consolidaram o triunfo dos novos clérigos que eles mesmos são. Sua adesão ao populismo não será apenas a primeira de outras tantas traições?

* Rodrigo de Lemos é professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e doutor em literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614

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