Nonsense na veia
Com muita ironia e sutileza zero ao falar de cinema, 'Choque de Cultura' conquistou primeiro um público improvável, e agora é visto por milhões de pessoas
Em um cenário simplório, composto de três caixotes de madeira e uma bancada, quatro motoristas de van, o meio de transporte das periferias, comentam, como se fosse a coisa mais normal do mundo, o filme 2001 — Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. “É como se você tivesse tentado trocar o pneu da sua van, a van se revoltasse, te trancasse do lado de fora e ficasse dando respostinha”, resume um. “Não tem que ficar dando inteligência para carro”, adverte outro. “Eu sou contra a inteligência”, decreta o terceiro. Choque de Cultura, humorístico nascido na internet (onde mais?) e que registra 2 milhões de visualizações a cada vídeo, tem como mola propulsora a crítica de cinema surreal. Há um mês, fez um caminho raro para esse tipo de atração: chegou à TV aberta. Mais precisamente à Globo.
Choque de Cultura apresenta-se como “um programa cultural com os maiores nomes do transporte alternativo”. Criada em 2016 pelos roteiristas Daniel Furlan, 38 anos, e Caíto Mainier, 41, com participação do publicitário Leandro Ramos, 37, e do ator Raul Chequer, 33, a atração foi parar no Omeleteve, um dos maiores portais de cultura pop do país, e está no ar todo domingo na Globo, comentando durante cinco minutos o filme exibido em Temperatura Máxima. O grupo está lançando ainda, em novembro, o primeiro livro, 79 Filmes para Assistir Enquanto Dirige, uma coletânea de críticas que esgotou os 20 000 exemplares em pré-venda. Além dos quatro protagonistas, assinam a obra os roteiristas David Beninca, Fernando Fraiha, Juliano Enrico e Pedro Leite, todos envolvidos no programa.
Não foi um começo fácil no portal, em que crítica de cinema é coisa séria. “Os nerds levaram algum tempo para entender que era ironia”, conta Ramos, que interpreta o Julinho da Van, tipo clássico da Zona Oeste carioca, de camisa regata e muitos palavrões. Mas, passado o primeiro espanto, os views se multiplicaram, impulsionados pelo boca a boca dos maiores fãs — justamente os críticos de cinema e roteiristas. “Choque de Cultura é uma sátira à própria crítica e sua qualificação da ‘alta’ e ‘baixa’ cultura”, explica Pedro Curi, coordenador de pós-graduação em audiovisual da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro. “Os críticos gostam da sátira e o público em geral se diverte ouvindo ali o que muita gente pensa sobre blockbusters e filmes cult.”
E tome gargalhadas. O longa Real, sobre o conjunto de medidas que derrotou a hiperinflação no Brasil, é entendido pelo quarteto como uma história estrelada por um super-herói cujo superpoder é o diploma de economia. “Se for comédia, é um excelente filme”, perpetra Renan (Furlan), com sua língua presa e capacidade de falar barbaridades sem piscar. Em dado momento, o personagem de Mainier, Rogerinho do Ingá, o mais agressivo do grupo e responsável pela “apresentação”, diz que não vai tolerar preconceito ali porque “preconceito é coisa de cigano”. A personificação do crítico chato fica a cargo de Chequer, intérprete de Maurílio, que transporta atores e gente de cinema e ganhou dos colegas o apelido de Palestrinha, por suas intervenções cheias de termos técnicos.
Os criadores citam como inspiração o programa Hermes e Renato, da MTV. Há quem veja pitadas de TV Pirata, pioneiro na prática do humor satírico e nonsense. “O Choque alia o humor moderno com uma receita tradicional de personagens e bordões”, avalia Antonio Tabet, do Porta dos Fundos. Mas essas já são elucubrações alheias aos quatro motoristas do programa, que veem na série Velozes e Furiosos o suprassumo do universo cinematográfico. Como pontifica Julinho da Van: “Todo mundo sabe que cinema é carro, explosão e mulherio”. Pelo sucesso do quarteto, talvez seja mesmo.
Com reportagem de Bruna Motta
Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2018, edição nº 2606