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No lugar da fala, a escuta

O que Clarice, Otelo e alguns povos ensinam sobre nós e os outros

Por João Cezar de Castro Rocha
Atualizado em 26 nov 2019, 19h41 - Publicado em 28 dez 2018, 07h00

– Nos seus últimos livros, Clarice Lispector buscava reinventar-se como escritora. Recorde-se a severa autocrítica que estrutura Um Sopro de Vida: “Estou com a impressão de que ando me imitando um pouco. O pior plágio é o que se faz de si mesmo”.

– Otelo foi levado à presença dos homens ilustres de Veneza para defender-­se de uma acusação grave. Brabâncio, pai de Desdêmona, acusava-o de haver enfeitiçado a filha. De outro modo, como entender que ela tudo abandonasse para casar-se com o mouro?

– Filosoficamente, o conceito de “lugar de fala” permanece enredado na armadilha do cogito cartesiano. Isto é, o sujeito individual segue sendo o alfa e o ômega da produção de sentido. “Penso, logo existo”, acreditava o francês Descartes; “Sou, logo falo”, acreditam os partidários do “lugar de fala”.

– O filósofo Gustavo Esteva tem articulado uma reflexão importante a partir de uma observação aguda: no idioma das culturas maias tzotzil e tzeltal, do sul do México, não se dispõe de estrutura para a afirmação prosaica porém ingenuamente solipsista “Eu falo”. Pelo contrário, assim se constroem mundos em tzeltal e tzotzil: “Eu falo porque tu me escutas”. No lugar da fala, a escuta — e seus múltiplos endereços.

– A Hora da Estrela enfrenta o desafio que importa: como escrever sobre uma vida tão outra da nossa? Clarice imaginou uma resposta (aliás, atualíssima): um nada da empatia apaziguadora das redes sociais — “Vejam como sou uma boa pessoa!” — para um tanto de risco calculado. Nas palavras da autora, isto é, do narrador Rodrigo S.M.: “Como é que sei tudo que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi. É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe”.

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– A acusação contra Otelo tinha como pena prevista a execução. Sereno, o mouro revelou seu segredo: narrar suas aventuras. “Que ela me amou pelos perigos que passei, / E eu a amei pela sua pena das minhas penas. / E foi esse o único feitiço que usei”. Eis o elogio máximo da experiência literária! A ampliação do repertório estético e existencial favorece a simpatia com a circunstância alheia.

– O filósofo sul-africano Mogobe Ramose tem desenvolvido um pensamento instigante com base na palavra “ubuntu”, do idioma zulu, e que condensa uma visão do mundo expressa numa noção ampliada de identidade: “Eu sou porque somos”. Ora, por que cingir o sujeito ao figurino estreito de um eu-eu-mesmo? Por que não conceber um sujeito muito mais ambíguo e provocador: o eu-nós-outros? Tal subjetividade-mosaico não se conforma a um “lugar de fala”, pois ele é o exercício constante de “lugares de escuta”.

– Você tem razão: “lugares de escuta” somente deve ser escrito no plural.

Publicado em VEJA de 2 de janeiro de 2019, edição nº 2615

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