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Morre Nelson Pereira dos Santos, o mentor do Cinema Novo

Cineasta iniciou o movimento cinematográfico no país, fundou o 1º curso na área e conquistou um lugar privilegiado entre os escritores da ABL

Por Da redação
Atualizado em 21 abr 2018, 21h27 - Publicado em 21 abr 2018, 19h16

Morreu neste sábado, aos 89 anos, Nelson Pereira dos Santos, um dos mais inovadores e importantes nomes do cinema brasileiro, precursor e mentor do Cinema Novo, movimento de renovação da arte cinematográfica no país, que ecoou também fora das fronteiras do Brasil. Nelson estava internado desde o dia 12 de abril no Hospital Samaritano no Rio de Janeiro com sintomas de pneumonia e um tumor no fígado. A causa confirmada da morte foi falência múltipla dos órgãos.

Para além do cinema, Pereira dos Santos atuou como jornalista e educador. Foi o fundador do primeiro curso de cinema no Brasil, na Universidade de Brasília, e, mais tarde, instaurou a especialidade na graduação da Universidade Federal Fluminense. Lecionou como professor convidado na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA), e na Universidade de Columbia, em Nova York.

Em 2006, foi o primeiro cineasta a se tornar membro da Academia Brasileira de Letras. Pereira do Santos foi eleito para a cadeira de número 7, antes ocupada por Sergio Correia da Costa, e por nomes como Euclides da Cunha, Valentim Magalhães e, o patrono, Castro Alves.

Assim como seus antecessores na ABL, Pereira dos Santos é conhecido pela brasilidade de suas obras, que abordam questões culturais e sociais, entre paisagens variadas, expondo mazelas e alegrias da nação, da malandragem carioca e as delícias da bossa nova, até a seca do nordeste e a vida na favela. Ávido fã de literatura, o diretor bebeu de fontes consagradas, especialmente em nomes como Machado de Assis, Jorge Amado, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. O último, aliás, rendeu dois dos mais importantes títulos conduzidos pelo cineasta: Vidas Secas (1963) e Memórias do Cárcere (1984), ambos premiados no Festival de Cannes.

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Cinema como vocação

Nelson Pereira dos Santos nasceu em 22 de outubro de 1928, em São Paulo, e dividiu sua infância entre os tradicionais bairros do Brás e da Bixiga. Passava as tardes da adolescência entre as partidas de futebol na rua e as salas de cinema, hábito incentivado pelo pai cinéfilo. Ao fim do colegial, ele conhece sua futura esposa, Laurita Andrade Sant’Anna, com quem ficaria casado por 50 anos e teria três filhos: Nelson, Ney e Márcia.

Assim como muitos dos colegas da época, se forma em direito, no Largo São Francisco. Contudo, a paixão pelo cinema já ditava seu futuro. A vocação o conduz a Paris, onde ele cursa o Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC), escola que recebeu outros famosos cineastas brasileiros, como Eduardo Coutinho e Ruy Guerra.

Na década de 1950, Pereira dos Santos se muda para o Rio de Janeiro, onde trabalha como jornalista e também como assistente de direção, produção e até como ator.  Em 55, aos 27 anos, ele lança seu primeiro filme, Rio 40 Graus, sobre o cotidiano de pessoas variadas em um dia de verão na capital carioca. Um grupo de meninos negros, moradores do morro, vendem amendoim para turistas enquanto servem como fio condutor entre as histórias.

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Inspirado no neorrealismo italiano, a obra de baixo orçamento lança mão de locações reais e atores não profissionais, caminha entre a favela no morro, passa por cartões postais da cidade enquanto mostra sutilezas da cultura brasileira, sem deixar de fora o futebol e o samba.

O estilo, até então inédito no país, que, na época, apostava nas chanchadas, serviria de inspiração para outros cineastas, que poucos anos depois fundariam o movimento chamado de Cinema Novo. “Tinha certeza de que estava assistindo a algo inaugural, a uma obra fundadora”, diz o diretor Cacá Diegues em sua biografia Vida de Cinema (Objetiva).

Rio 40 Graus refletia como poucos a ideia da nova fase de produções brasileiras, que acabou resumida na frase “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Nelson Pereira ainda contribuiria para o empurrão do Cinema Novo ao produzir o drama paulistano Grande Momento, de Roberto Santos, lançado em 1958, outro importante título inaugural do movimento.

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Eclético, o cineasta não estacionou no naturalismo e nem no eixo Rio-São Paulo. Sua obra permeou várias linguagens e lugares, em uma constante homenagem à variedade da cultura nacional.

Literatura e música

Nos anos 1960, já com um nome a zelar, o cineasta toma emprestado de Nelson Rodrigues e Graciliano Ramos a trama para os filmes Boca de Ouro (62) e Vidas Secas (63), respectivamente. Aliás, a primeira adaptação de Graciliano pelas mãos do cineasta foi indicada à Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1964, e ganhou o prêmio OCIC, voltado para produções com preceito humanitário.

“Na tentativa inicial de filmar uma obra de Graciliano, em 1959, eu fracassei. Fui filmar em Juazeiro da Bahia quando havia acabado de chover, houve uma enchente, a caatinga ficou verde”, conta, bem-humorado, Pereira dos Santos ao site de VEJA em conversa sobre sua paixão pela obra do escritor alagoano. “Inventei outro filme, na hora. E aí saiu Mandacaru, um verdadeiro fracasso”, diz sobre o romance em tom de faroeste Mandacaru Vermelho (1961), feito às pressas e com roteiro precário.

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O universo de Graciliano continuou no radar do cineasta. Ele chega a filmar um curta-metragem, baseado no conto O Ladrão, do livro Insônia, e emplaca uma de suas principais obras: Memórias do Cárcere (1984). Baseado no livro autobiográfico de mesmo nome, lançado em 1953, o filme conquista o prêmio da crítica internacional do Festival de Cannes.

Assim como a literatura, a música popular também serve de inspiração para o diretor, que, em 1979, lança A Estrada da Vida, no qual o gênero sertanejo é usado como fundo para uma análise da construção da identidade do brasileiro. A trama acompanha a trajetória da dupla Milionário e José Rico, com os próprios cantores interpretando seus papéis.

Os dois últimos trabalhos do cineasta, aliás, são documentários focados na bossa nova, especialmente na figura de Tom Jobim. O primeiro, A Música Segundo Tom Jobim (2012), traz uma sequência de canções do compositor, entoadas por ele e por diversos intérpretes do mundo. Já A Luz do Tom (2013) se deleita em histórias intimas do músico, contadas por mulheres próximas a ele.

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O Brasil em festivais

As nuances da cultura brasileira permearam toda a obra de Nelson Pereira dos Santos. Apesar de tratar temas locais, seus filmes foram bem recebidos fora do país. Além das produções já citadas, que saíram premiadas em Cannes, ele foi indicado duas outras vezes à Palma de  Ouro, com os filmes Azyllo Muito Louco (1970), inspirado em O Alienista, de Machado de Assis, e O Amuleto de Ogum (1974), longa em clima musical, que vasculha a cultura da religião umbanda, quando um jovem procura proteção para ter o corpo fechado a pedido da mãe.

Já no Festival de Berlim, o diretor foi indicado ao Urso de Ouro quatro vezes. A primeira foi com Fome de Amor (1968), talvez o mais sensual trabalho de Santos, em que dois casais se envolvem em uma ilha secreta. Depois, foi a vez de Como Era Gostoso o Meu Francês (1971), longa inspirado em fatos, que mostra o poder dos Tupinambás nas negociações e embate com os colonizadores portugueses e franceses no Brasil. Em seguida, foi eleito pela competição Tenda dos Milagres (1977), adaptação da obra de mesmo nome do autor Jorge Amado, que enaltece a cultura negra popular baiana e a mestiçagem.

O último filme do cineasta a concorrer ao prêmio foi A Terceira Margem do Rio (1994), inspirado no conto homônimo do livro Primeiras Estórias de Guimarães Rosa, que conta a história de um homem que abandona a família para viver sozinho em um bote, no rio.

A boa presença em eventos cinematográficos mundiais rendeu a Pereira dos Santos uma cadeira no júri do Festival de Veneza de 1986 e em 1993.

Em 2006, quando é eleito para ocupar a cadeira 7 da ABL, o cineasta exalta os escritores que lhe serviram de inspiração, relembra sua trajetória, e faz uma breve menção ao Cinema Novo:  “Participo, pois, há meio século, do processo de crescimento e afirmação do cinema brasileiro, apesar dos acidentes de percurso em suas relações imprescindíveis com o Estado. O que importa, porem, é que o cinema brasileiro atual demonstra vitalidade, potência criativa e pluralidade temática, tornando-se cada vez mais representativo da múltipla e rica cultura do país”, disse em parte de seu discurso de posse.

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