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Mania de acelerar imagem de filmes ganha adeptos (e irrita diretores)

No mundo do streaming, o que vale mesmo é correr, e correr muito, para não deixar escapar a profusão de ofertas on-line

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 nov 2019, 11h36 - Publicado em 29 nov 2019, 06h00

Em Curtindo a Vida Adoidado, de 1986, um clássico dos filmes para adolescentes, o personagem Ferris Bueller, interpretado por Matthew Broderick, solta uma frase que virou um mantra, repetida à exaustão por quem sempre gostou de ficar de pernas para o ar: “A vida passa muito depressa. Se não paramos para curti-la de vez em quando, ela passa e você nem vê”. Três décadas depois, na era das redes sociais, do streaming, do mundo amplamente conectado, a máxima parece ter perdido o sentido original. Agora, o que vale mesmo é correr, e correr muito, para não deixar escapar a profusão de ofertas on-line.

A ociosidade é quase um crime de lesa-pátria. A Netflix, atenta a essa acelerada movimentação, anunciou, em outubro, uma experiência insólita até para seus ávidos e apressadinhos 155 milhões de assinantes no mundo (no Brasil, são 10 milhões): o teste, em dispositivos móveis do sistema operacional Android, de um recurso para acelerar a velocidade de filmes e séries. Um episódio de cinquenta minutos, a média de duração de cada capítulo da aclamada House of Cards, poderia ser visto em 33 minutos e 30 segundos. Com isso, as pausas dramáticas perderiam a intensidade prevista pelos roteiristas, produtores, diretores e atores.

Não por acaso, a chiadeira foi maciça. O cineasta americano Judd Apatow, de séries como Love (lançada pela própria Netflix) e Freaks and Geeks — clássico da virada dos anos 1990 para os 2000 —, foi ao Twitter para esbravejar: “Não me faça ligar para todos os diretores e criadores de séries no planeta para brigar por causa disso. Poupe o meu tempo (…) Nós entregamos coisas legais. Deixe-as como foram projetadas para ser vistas”. O também diretor Brad Bird, de desenhos animados do estúdio Pixar, como Os Incríveis e Ratatouille, endossou o coro: “É outra ideia espetacularmente ruim”.

As cabeças pensantes da Netflix se inspiraram em truques muito comuns na internet — as extensões de navegadores, como as do Google Chrome, que permitem a exibição de conteúdos de modo mais rápido. Isso funciona muito bem no YouTube e no Facebook, fundamentalmente em registros de palestras ou discursos, para os quais não se exige plena atenção. A tendência é herança de uma onda dos anos 1960, as técnicas de leitura dinâmica, que prometiam mundos e fundos ao possibilitar uma travessia mais ágil de qualquer texto. Já naquela época, na antessala da era do computador doméstico e, posteriormente, da web, havia preocupação com o tempo, que insistia em passar. Hoje, então, acelerar os ponteiros é quase uma imposição — ainda que os resultados positivos dessa correria inexistam e, sobretudo entre crianças e jovens, sejam evidentemente ruins.

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Antes de chegar aos filmes e séries, o mecanismo foi adotado pelos podcasts. Uma pesquisa realizada em 2017 publicada no The Podcast Download Report mostrou que 42% dos ouvintes já experimentaram escutar os programas de forma acelerada, sem paciência. Do áudio para as imagens, o salto foi rápido. Uma das ferramentas de velocidade suplementar disponíveis para navegadores da internet, o Video Speed Controller, foi instalada por mais de 900 000 pessoas. Nos comentários, os elogios pululam: “É tão útil que não consigo mais viver sem”; “Poupei centenas de horas nos últimos anos”; “Uma daquelas coisas que você não sabe que precisa, mas, depois da primeira vez, é a solução para tudo”. Seria mesmo tão imprescindível e milagroso? Evidentemente não, e cabe portanto indagar os motivos de tanta ansiedade.

De acordo com o psiquiatra Cristiano Nabuco, do Grupo de Dependências Tecnológicas da Universidade de São Paulo (USP), a aceleração atende a um desejo que já anda em corações e mentes atrelados às séries: o anseio pelo desfecho, o elo entre um episódio e outro e, invariavelmente, assunto para mesa de bar — ou melhor, para postagens no Twitter e no Facebook, além de imagens com frases curtas no Instagram. “O prêmio, como recompensa, está sempre no fim”, diz Nabuco. Contudo, ao aproximar rapidamente os epílogos, pegando atalhos, no avesso do ritmo imaginado pelos criadores, o cidadão afobado acaba alimentando danos mentais — que podem não ser graves, mas pedem atenção. Com o consumo desenfreado, perde-se a chamada “ancoragem da memória”, ferramenta pela qual o ser humano fixa o que viveu e pode interpretar o conteúdo com calma, alimentando os neurônios, como se eles estivessem sendo naturalmente exercitados. Sair em disparada faz mal. Perde-­se, sobretudo, a capacidade — humana, demasiadamente humana — de fazer relações com o passado.

Com filmes, com músicas, em qualquer experiência artística, o que se vê agora é imediatamente relacionado ao que se viu antes, num exercício saudável de referências. Assim a civilização cresceu, e é o que nos distingue dos animais. A ligeireza faz encolher a empatia, transforma as montanhas de emoções em planícies sem profundidade. “As pessoas mal se lembram do que viram”, resume Nabuco. Os defensores da novíssima mania alegam ter acesso a mais filmes, a mais séries, a mais de tudo, e isso seria bom. Dizem não haver problema de compreensão — e, de fato, dá para entender as frases, ainda que um pouco distorcidas. Mas esse é um comportamento um tanto insólito, que deixaria Ferris Bueller incomodado. O melhor seria curtir a vida adoidado, porém a seu tempo. Sem pressa. E, como tantas outras invencionices dos tempos plugados, os aceleradores de vídeos podem sumir na mesma velocidade em que apareceram.

Publicado em VEJA de 4 de dezembro de 2019, edição nº 2663

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