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Luz, câmera e muita bufunfa

Com trinta produções brasileiras, Netflix sacode a indústria nacional de entretenimento. VEJA abre 'caixa-preta' da plataforma para entender o investimento

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 Maio 2019, 13h08 - Publicado em 3 Maio 2019, 07h00

Com roupas de brechó e cabelos de cores vivas, jovens se acotovelavam no anfiteatro de uma universidade de São Paulo para ouvir um alinhado executivo de 54 anos. O americano Ted Sarandos, chefão criativo da Netflix, desfiou um discurso que soava como o tinir de anacrônicas moedas de metal para o público formado por estudantes de cinema e televisão. O responsável pela linha de produção de séries, filmes e documentários da plataforma global de streaming ensinou como eles poderiam conquistar um lugar na sua vitrine. Espectadores excitados perguntavam: “O que devo fazer para apresentar meu projeto à Netflix?”. Sarandos inflamava o entusiasmo da moçada: “Espero que um dia vocês trabalhem conosco”.

A euforia testemunhada por VEJA há duas semanas, quando Sarandos fez um giro por Rio e São Paulo, tem seu lastro na realidade. Nos últimos três anos, a plataforma já vinha mexendo com o mercado das produções nacionais — o ponto de partida foi a estreia de 3%, série distópica ambientada em trópicos futuristas. Agora, a Netflix vai botar de vez seus tanques nas ruas. Até o ano que vem, planeja lançar trinta títulos nacionais, entre filmes e seriados de gêneros variados, incluindo uma história de zumbis que se passa no Rio de Janeiro, com Sabrina Sato no elenco — o programa se chama Reality Z e é uma versão de Dead Set, série inglesa do criador de Black Mirror, Charlie Brooker. Tramas juvenis com Larissa Manoela e Maisa Silva engrossam o pacote. “Estamos apenas começando a investir no Brasil. É nossa infância aqui”, disse Sarandos a VEJA (confira a entrevista).

A aposta redobrada em produções nacionais é decorrência de certo jogo duplo que a Netflix faz para ampliar sua base de assinantes. Ao mesmo tempo em que investe em produções globais made in Hollywood, a empresa compete cada vez mais abertamente com produtores de TV em mercados locais, do México à Índia. Conhecida pelo silêncio sobre seus números, a plataforma revelou a VEJA, pela primeira vez, dados sobre sua notória “caixa-preta”. Eles explicam muito de sua atração pelo Brasil. Já bate em 10 milhões sua massa de assinantes no país. Mas há uma avenida para percorrer, já que a Netflix representa apenas 5% do tempo total que os brasileiros passam assistindo conteúdo em uma tela.

RITMO DE BOSSA NOVA –  Pathy Dejesus nos bastidores de ‘Coisa Mais Linda’: mensagens de fãs em línguas que ela nem conhecia (Aline Arruda/Netflix)

A Netflix sabe no que mira: metade dos assinantes aprecia programas nacionais. Ao aplicar à produção local sua política de customização extrema, o gigante do streaming espera abrir espaço para gêneros raros na tradição folhetinesca da nação. Tendo como pano de fundo um programa à la Big Brother, Reality Z colocará zumbis nas ruas cariocas. “Imagino que eles terão de correr mais para atacar suas vítimas, já que apodrecerão mais rápido por causa do calor tropical. Vai ter muita carne caindo de biquínis”, diz Charlie Brooker, com seu peculiar humor negro britânico.

A fantasia, mais uma vertente desprezada da teledramaturgia nacional, estará representada por O Escolhido, adaptação de uma série mexicana feita pelos escritores Raphael Draccon e Carolina Munhóz. O casal, criador de dramas com dragões e sociedades místicas, despontou com sucesso na literatura há coisa de uma década, mas só agora cavou espaço na TV. Sem terem encontrado lugar na produção nacional, os dois se mudaram para Los Angeles faz pouco mais de três anos. “Queríamos expandir nossa audiência”, diz Carolina. Por lá, contrataram uma agência de talentos e se aproximaram da Netflix. O flerte culminou no convite para a série ambientada em um vilarejo assolado por uma estranha mutação do vírus da zika. “É um thriller sobrenatural”, define Draccon. Para o público estrangeiro, o exotismo da paisagem brasileira pode ser um chamariz.

A expansão das produções nacionais muda inclusive o modo como atores e roteiristas — os “talentos”, como são lisonjeiramente chamados no jargão do meio — vendem seu peixe. Até aqui, eles dependiam não apenas da competência, mas da sorte e dos bons contatos. Pedro Aguilera, criador de 3%, é um caso exemplar. Aos 30 anos, ele dificilmente teria a carreira que tem, não fosse o modelo Netflix. Aguilera estava na faculdade quando desenvolveu sua distopia. Em 2009, fez o primeiro episódio com verba de um fundo do Ministério da Cultura e colocou o piloto no YouTube. Uma estratégia de guerrilha foi montada para divulgar o vídeo, até chamar a atenção da Netflix. “Minha geração entrou na faculdade quando nascia o YouTube. É natural o desejo de produzir ficção para ser vista pela internet”, diz. Enquanto finaliza a terceira temporada de 3%, ele faz outra ficção científica para a plataforma: Onisciente, suspense gravado em São Paulo sobre uma sociedade vigiada por drones.

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QUESTÃO DE GÊNERO –  O cenário natural de ‘O Escolhido’ (acima) e elenco de ‘Samantha!’: da fantasia à sitcom (Emiliano Capozoli/Netflix - Fabio Braga/Netflix)

Além de novos talentos, a Netflix tem sido eficaz em atrair rostos conhecidos da TV aberta. No ano passado, irritou a Globo ao fechar parceria com Marco Pigossi, ator em alta nas novelas. Pigossi fez a fraca série australiana Tidelands e, agora, vai gravar Cidades Invisíveis, produção de Carlos Saldanha, conhecido pela franquia A Era do Gelo. Em casos assim, o que está em jogo não é só dinheiro, mas o prestígio de juntar-se ao barato global do streaming. “Tinha vontade de me reinventar. Nas novelas, buscava extrair coisas novas dos meus personagens, mas essa possibilidade é limitada nos mocinhos”, diz Pigossi. O streaming também beneficia artistas que tinham menos destaque do que mereciam na TV. Depois de participar de novelas e do finado Vídeo Show, a atriz Pathy Dejesus fez valer seus dotes na série Coisa Mais Linda, que retrata o universo feminino do Rio da bossa nova. “Uma semana depois de a série estrear, já recebia mensagens em línguas que eu tinha de jogar no Google Tradutor. Não sabia se estavam em coreano ou japonês”, diz Pathy.

Para executar seu plano, a Netflix vai tirar muitos escorpiões do bolso. A pedido de VEJA (e sob anonimato), um especialista calculou que o gasto não será inferior a 200 milhões de reais. É um troco perto de seus investimentos globais de 13 bilhões de dólares, mas um dinheirão para um mercado que — à exceção da Globo — vive aos trancos e barrancos. A Netflix está produzindo 40 000 empregos no país. “Isso é bom para o setor não ficar pendurado em leis de incentivo que podem ser voláteis”, opina o produtor Roberto d’Avila. À maneira do menu da Netflix em geral, a produção brasileira é irregular. A sitcom Samantha! é simpática e 3% tomou banho de loja na segunda temporada, conquistando público nos Estados Unidos. “Fãs começaram a fazer aulas de português depois de nos conhecer”, diz Bianca Comparato, a protagonista. Já Coisa Mais Linda, apesar da fotografia impecável, empaca em um feminismo raso. “Na vida, não tem milagre: quanto mais a gente faz, melhor fica”, diz o produtor Beto Gauss. Assim seja.

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Publicado em VEJA de 8 de maio de 2019, edição nº 2633

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