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Liberdade ou censura?

O radicalismo criou um outro tipo de cerceamento à expressão

Por Walcyr Carrasco
Atualizado em 15 nov 2019, 11h51 - Publicado em 15 nov 2019, 06h00

Na novela A Dona do Pedaço, de minha autoria, na Globo, pela primeira vez uma atriz trans interpretou uma trans. Britney (Glamour Garcia) teve uma imensa acolhida do público. Foi um gesto pioneiro. Imaginei que isso me daria credibilidade no próprio universo trans. Mas não aconteceu. Minha peça Seios seria apresentada na Satyrianas. Trata-se de um importante festival de teatro, em São Paulo, que acontece agora, com 78 horas de atividades ininterruptas. Na Praça Roosevelt. Tornou-se um ímã para grupos alternativos, novos autores, diretores. Seios, com o ator Dionísio Neto, conta a história de uma pessoa em processo de transformação física (já com os seios do título, mas ainda com o corpo masculino). E que tenta uma renovação do relacionamento com a ex-mulher. De repente, recebi um telefonema de Ivam Cabral, ator, dramaturgo e um dos criadores dos Satyros. Ele havia sido procurado por representante do Movimento Nacional de Artistas Trans (Monart), que ameaçava boicotar não só meu espetáculo mas todo o festival se a peça fosse apresentada. Motivo: a personagem não ser interpretada por uma trans.

Levei um susto. Abri mão da apresentação. Mas fiquei chocado. Na época do governo militar, sob o qual eu vivi, existia a censura. O censor era alguém encarregado de ler textos jornalísticos, novelas, peças de teatro, tudo, e cortar o que considerasse ofensivo ao regime. Nós, artistas, odiávamos. Agora deparei com uma realidade pior. Fui censurado sem terem visto a peça! Nem lido o texto! É a proibição de orelhada. Por ouvir falar. Mas justamente os trans não estão lutando por liberdades, pelo reconhecimento de direitos? Não é um movimento contra o obscurantismo, contra a restrição? Mas restringem a mim, ao autor, à direção do festival?

“Há deformação em vários movimentos que lutam pelos direitos humanos. Eles podem se tornar ditatoriais”

Há uma deformação em vários movimentos que lutam pelos direitos humanos. Eles podem se tornar radicais e ditatoriais. Existe uma corrente segundo a qual trans só podem interpretar trans. Para outra, atores e atrizes trans podem fazer personagens femininos ou masculinos. A atriz trans Maria Clara Spinelli foi bombardeada por interpretar uma mulher cisgênero (cis são as pessoas que se identificam com seu corpo de nascença, sejam gays ou não) na novela A Força do Querer, de Gloria Perez. Houve um personagem trans na mesma novela, igualmente bombardeado por ser interpretado por uma atriz.

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A questão é: o ator não é alguém que se coloca no lugar do outro? Estabelecer que trans só podem interpretar trans diminui o campo de trabalho para eles, e mesmo as histórias que esses atores e atrizes podem viver. Ao mesmo tempo, se podem buscar outros personagens, o inverso vale também. Atores e atrizes não trans poderiam interpretar trans. É questão de justiça.

Eu sei que ser trans é difícil. Que trans procuram estabelecer seu espaço. Lutam por um lugar de fala. Mas o radicalismo inverte a situação. Sempre bradamos contra a censura conservadora. Não é o caso de abrir os olhos para um novo tipo de censura, criada por quem ergue a bandeira da liberdade?

Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661

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