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Fernanda Torres: ‘Silvio Santos nunca terá a sensibilidade de Zé Celso’

Para a atriz, que lança segundo romance nesta terça no Oficina, não há ‘como dotar SS ou João Doria do conhecimento, urbes, inclusão e história de Zé Celso’

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 17 nov 2017, 09h25 - Publicado em 14 nov 2017, 08h32

Quando se pôs a planejar o lançamento de seu segundo romance, o inteligente e divertido A Glória e Seu Cortejo de Horrores (Companhia das Letras), a atriz Fernanda Torres decidiu que queria realizar o evento não em uma livraria, mas dentro de um teatro. Afinal, o seu protagonista, Mario Cardoso, é um ator, e boa parte das histórias que narra se passam ou num palco ou nos bastidores da televisão – até as tramas bíblicas da Record figuram no livro. E, ao pensar em um teatro, conta Fernanda, foi natural escolher o Oficina, onde faz na noite desta terça-feira uma leitura dramática do romance ao lado da mãe, Fernanda Montenegro, do ator Antonio Fagundes e do ator e diretor José Celso Martinez Corrêa, um evento que, diante das novas investidas do empresário Silvio Santos sobre os terrenos em volta do teatro, ganhou tom de ato em defesa do Oficina.

“A proposta de lançar o livro no Oficina foi feita e aceita antes da decisão do Condephaat e do encontro do Zé Celso com o Silvio Santos e o João Doria. Foi um acaso curioso, porque o livro fala da história da arte, no Brasil, e do próprio país, através da trajetória de um ator, e o lançamento calhou de acontecer nessa hora de embate entre visões antagônicas de cultura, e de cidade, tão bem expostas naquela reunião com o prefeito”, conta Fernanda, que se mostra estarrecida com o tal “embate”, visto como um triste espetáculo nos vídeos que registraram a reunião entre Zé Celso e Silvio Santos, mediada em agosto pelo prefeito de São Paulo, João Doria, na sede do SBT.

Na entrevista abaixo, Fernanda Torres fala do seu novo livro, lançado quatro anos depois do romance de estreia, o também elogiado Fim, de teatro e de TV, de Silvio Santos e João Doria e da importância do Teatro Oficina, que ela e a mãe vêm defendendo publicamente.

 

A Glória e Seu Cortejo de Horrores cobre décadas da cultura brasileira. O livro segue uma linha evolutiva? Essa ideia de linha evolutiva não existe, assim me ensinou Manuela Carneiro da Cunha, na entrevista que fiz com ela para o Minha Estupidez. O passado não era melhor ou pior do que o presente. O mundo, a cultura, o homem, tudo caminha para o lado, para trás, e de vez em quando para a frente. Não tenho nenhum saudosismo. Claro, eu estou por aqui há 52 anos, portanto, o que aconteceu antes já foi digerido, entendido, e parece mais ordenado e compreensível. Mas não havia esse sentido de ordem antes, como não há agora. A arte não era melhor antes do que agora, ou vice-e-versa.

Os 40 foram muito potentes, os 50 pesam mais, porque a idade começa a se fazer realmente presente. Mas a experiência que se ganha, a maturidade, isso só se alcança com o tempo, e compensa qualquer dor nas juntas

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O protagonista, Mario Cardoso, é homônimo de um ator. Ele é inspirado em alguém específico? Todos os personagens do livro bebem em alguém, em vários alguéns, sem deixarem de ser eles mesmos. O Mario está no Bogus, no Zanoni Ferrite, no Evandro, no Wilker, no Fagundes, no Cuoco, no Sérgio Britto, mas não é nenhum deles. Alguns personagens periféricos se referem a uma ou outra pessoa específica, mas são periféricos. Não cheguei a pedir autorização para atores reais como Sônia Braga, que “aparece” no livro. Os personagens principais, ou mesmo coadjuvantes, são todos fictícios.

Mario enfrenta, entre outros desafios, a passagem do tempo. Isso já pesou para você? Acho que ali pelos 30 foi a primeira vez que experimentei um certo cansaço, uma sensação de que poderia ser ou fazer outra coisa. Os quarenta foram muito potentes, os 50 pesam mais, porque a idade começa a se fazer realmente presente. Mas a experiência que se ganha, a maturidade, isso só se alcança com o tempo, e compensa qualquer dor nas juntas.

É uma visão Miami de progresso, difícil de rebater. Zé Celso e Perfeito Fortuna, que fundou o Circo Voador e reergueu a Lapa, são homens públicos com uma visão potente de cultura, de educação, de inclusão, de urbes, de história, é um conhecimento que o Doria não tem, nem nunca vai ter. O prefeito que gosta de apagar grafites, por considerá-los feios, acredita em mall, em Miami, em Ralph Lauren. É impossível dotar, tanto o Silvio, quanto o Doria, da sensibilidade do Zé, ou do Perfeito Fortuna

No livro, Mario Cardoso experimenta a glória no período áureo da TV brasileira. Como vê a produção televisiva atual? Ela está se abrindo enormemente. O video on-demand (VOD), a mistura entre cinema e televisão, que duas décadas atrás mal se comunicavam, começa a acontecer. A explosão das séries, que permitem desenvolver um trabalho longo com uma história, um elenco, uma equipe, isso começa a acontecer no Brasil. E sem perder a potência das telenovelas, que habituaram o Brasil a se ver em português. Estamos vivendo um período de grande promessa na televisão.

Como surgiu a ideia de fazer o lançamento do livro no Teatro Oficina? Como o livro trata de um ator, pensamos em fazer num teatro, em vez de uma livraria. E não há teatro mais sagrado, em São Paulo, do que o Oficina. Pisar no Oficina, ir ao Oficina, estar no Oficina é um acontecimento definitivo na vida de qualquer um, esteja ele no palco ou na plateia. O Oficina é mais do que um teatro, tanto pela Lina, quanto pelo Zé, como pelo terreiro situado ali, ou por Euclides da Cunha, Shakespeare e Eurípides, que baixaram naquele palco muitas e muitas vezes. O Oficina é um teatro vivo, é um templo que soube se reinventar no tempo e no espaço. Lançar meu humilde livro naquele teto, com o Fagundes e minha mãe, e ouvir o Zé ler o Lear na cena da tempestade, numa hora tão avessa à cultura, é algo muito maior do que eu poderia imaginar, para botar o A Glória e seu Cortejo de Horrores no mundo.

Tudo o que o Oficina representa em termos de liberdade, de perigo, de sagrado e profano, é o que está sendo criminalizado na arte, na religião, e também na política

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Você diz ter assistido aos vídeos da reunião entre Zé Celso, Silvio Santos e João Doria. O que achou do encontro? Aquele encontro entre o Zé, o Silvio e o Doria é tão emblemático que talvez só Oswald de Andrade desse conta do que aconteceu ali. O Silvio pergunta ao Zé por que ele quer o terreno para ele. O diretor responde que não quer para ele, quer para a cidade, e propõe uma praça com jardins, cultura, ar; o Zé fala da idade do Silvio e dele, diz que estarão mortos em pouco tempo, e propõe um espaço comunal, livre de concreto para São Paulo. O Silvio aconselha o Zé a parar de sonhar, e diz que, apesar de já ser muito rico, não possui nenhuma vontade de ser filantrópico. Querem construir mais um paliteiro, numa cidade que não precisa de mais paliteiros, o Zé está certo. E aí vem a parte mais cruel da conversa, o Silvio diz que vai fazer um concurso de drogaditos na área e dar um prêmio ao mais drogado. Ou seja, as praças viraram sinônimo de cracolândia e é preciso, portanto, cimentar a cidade de malls, de arranha-céus, porque o espaço público, democrático, a rua, é sinônimo de perigo, de ameaça.

A Glória e Seu Cortejo de Horrores, de Fernanda Torres (Companhia das Letras; 216 páginas; 44,90 reais ou 29,90 em versão digital) (//Divulgação)

Como avalia a sugestão do prefeito João Doria de conciliar ali um empreendimento cultural e comercial? Na reunião, Doria, o prefeito que pensa em inglês, fala de assets, fundings e malls, e elogia os teatros de shopping, que o Zé sabe, qualquer ator sabe, são o túmulo do samba. É uma visão Miami de progresso, difícil de rebater. Zé Celso e Perfeito Fortuna, que fundou o Circo Voador e reergueu a Lapa, são homens públicos com uma visão potente de cultura, de educação, de inclusão, de urbes, de história, é um conhecimento que o Doria não tem, nem nunca vai ter. O prefeito que gosta de apagar grafites, por considerá-los feios, acredita em mall, em Miami, em Ralph Lauren. É impossível dotar, tanto o Silvio, quanto o Doria, da sensibilidade do Zé, ou do Perfeito Fortuna. Tempos difíceis, tempos estreitos, tempos pra lá de obtusos.

De que maneira a defesa do Teatro Oficina pode dar força à luta pelas artes, que vêm sofrendo perseguição? Tudo o que o Oficina representa em termos de liberdade, de perigo, de sagrado e profano, é o que está sendo criminalizado na arte, na religião, e também na política. O Oficina é a Tropicália, é Lígia Clark, é o Asdrúbal, é Oswald de Andrade e Hélio Oiticica, cuja retrospectiva no Whitney Museum, em NY, é o que de melhor está acontecendo na Big Apple. Nova York também virou um imenso mall. Essa visão obtusa de progresso não está acontecendo apenas aqui. É o fim do Império Romano. O Oficina é o Jardim de Herculano, é o teatro grego que come banana, mas estamos rumando para uma Idade Média do capital, vai demorar a passar.

Depois da série Filhos da Pátria, quais seus planos para a TV? Farei a próxima temporada da série Sob Pressão, e existe a possibilidade de uma segunda leva de Filhos da Pátria, que me daria um enorme prazer em fazer.

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