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Elogio da violência

Em sua nova obra, o filósofo Vladimir Safatle, estrela da esquerda acadêmica brasileira, politiza todos os aspectos da existência, do trabalho ao sexo. E, mais uma vez, louva a violência revolucionária

Por Eduardo Wolf
25 out 2015, 13h18

Na introdução de seu novo livro, o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle, um dos pensadores de esquerda mais celebrados hoje no Brasil, admite que a obra “poderia abrir as portas para um certo elogio da violência”. É uma declaração honesta e justa sobre O Circuito dos Afetos (Cosac Naify; 512 páginas; 59,90 reais), ensaio de fôlego em que psicanálise, filosofia política, marxismo e estudos culturais compõem o novo horizonte dessa esquerda que insiste em nos dizer seu nome. Num curto-­circuito conceitual muito ao gosto de certas confusões francesas que aqui passam por filosofia com mais facilidade do que o bom-senso e a boa educação permitiriam, o livro organiza-se menos como uma análise conceitual armada pelo desenvolvimento de argumentos e mais como uma colagem pós-­moderna de preferências intelectuais e culturais – todas, é claro, unificadas por uma chave de leitura obsessivamente ideológica, em que o capitalismo, a democracia liberal, o neoliberalismo e, em geral, a sociedade ocidental surgem como os quatro cavaleiros de um apocalipse sempre iminente, mas apenas previsto e compreendido por aqueles que, como o autor, são iniciados na referida chave de leitura. Assim, uma singular interpretação engajada da psicanálise de Sigmund Freud mistura-­se a discussões sobre o contratualismo de Thomas Hobbes e a especulações abstrusas sobre a filosofia do tempo em Friedrich Hegel; a literatura do romancista americano Don DeLillo alia-­se ao pensamento do francês Michel Foucault para uma crítica ao “neoliberalismo” como “regime de gestão social e produção de formas de vida que traz uma corporeidade específica, a corporeidade neoliberal”, seja lá o que isso queira dizer; o teórico italiano Giorgio Agamben vem de par com o inescapável (e onipresente, óbvio) Karl Marx para tratar da “dimensão estética da reflexão sobre o trabalho”, não sem, é claro, em poucas páginas, passar ao ataque da “precarização” do mundo do trabalho pelo mesmo neoliberalismo. Quase todos esses autores comparecem às páginas finais para, junto do “filósofo da medicina” Georges Canguilhem, anunciar-nos nada menos que uma “biologia que nos forneça fundamentos renovados para a negatividade própria à processualidade da contingência”. Já podemos imaginar os biólogos eufóricos, em seus tediosos laboratórios, aguardando a nova ciência do professor Safatle.

O problema não está na variedade de autores mobilizados no livro, ou na linguagem frequentemente pesada e integralmente contaminada pelo fascínio do jargão. Certo, incomoda o procedimento recorrente de apresentar Freud como um pensador da nossa “emancipação social”, sobretudo porque poucas passagens da obra do autor austríaco são chamadas à cena para corroborar as conclusões de Safatle, e aquelas que aparecem seguramente não as corroboram. Mas o coração do problema é outro, e é ele que bombeia o sangue que anima o circuito de afetos envenenados que este livro celebra. Eis seu primeiro veneno: para Vladimir Safatle, não há dimensão de nossa existência que não esteja (e que não deva estar) absolutamente colonizada pela política e pela ideologia. Nosso inconsciente, nossas mitologias, nossos afetos, o mundo do trabalho e da arte, bem como nossa condição biológica mais elementar – tudo deve ser pensado e sentido a partir do ângulo da política. Nisso o autor está em plena sintonia com nosso tempo: nossa sexualidade virou objeto de militância, nossos autores preferidos devem corresponder a categorias políticas e até o modo como nos locomovemos ou aquilo que comemos é matéria para disputas político-ideológicas. A diferença entre o projeto de Safatle e nosso atual estado de coisas reside apenas na preferência do autor por uma política que dissolva essas querelas “identitárias” – gay, trans, ciclista, vegan – e faça ressurgir uma “universalidade” potencialmente mais disruptiva, revolucionária.

O que nos leva ao segundo veneno a contaminar este Circuito dos Afetos: o modo ardiloso pelo qual seu autor aborda o tema da violência por esse mesmo prisma político que a tudo contamina. Ao longo do livro, o leitor encontra muitas teses que afirmam que nossas democracias liberais ocidentais são violentas, produzem violência, alimentam-se de violência, ainda que por mecanismos mais sutis. Ocorre que o mesmo Safatle que busca deixar patente a natureza “autoritária” de nossas democracias escreverá mais adiante, em meio a reflexões sobre o medo e a esperança, que “o corpo social por vir da esperança não se sustenta (…) sem a necessidade de ações violentas periódicas”. Seus exemplos? O “grande medo” jacobino e os “expurgos” soviéticos. Mas então como evitar que essa esperança não dependa do medo nem do terror? Ora, precisamos de uma “política transformadora” que seja “livre de projeção temporal”. Isso mesmo, leitor: com uma filosofia do tempo um pouquinho diferente, não teríamos precisado de guilhotinas ou de gulags para fazer revoluções.

As democracias liberais, para o autor, são constitutivamente violentas e perversas, devendo ser superadas, enquanto as experiências de terror revolucionário só precisam de retoques filosóficos. Não estranha que, ao abordar o fracasso das revoluções do século XX em outra obra, A Esquerda que Não Teme Dizer Seu Nome, Vladimir Safatle não tenha encontrado razão para desesperar do marxismo, perguntando retoricamente: “Quantas vezes uma ideia precisa fracassar para poder se realizar?” Qual será o futuro dessa ilusão? O passado responde de boa vontade.

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