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Dois livros iluminam a figura paradoxal de Peter Handke, o Nobel incômodo

O austríaco de credenciais irretocáveis teve sua premiação manchada pelo apoio a um genocida

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 24 jan 2020, 11h06 - Publicado em 24 jan 2020, 06h00

Em 2018, a Academia Sueca, que concede o celebrado Prêmio Nobel, foi abalada por um escândalo arrasador. O comitê de premiação da área de literatura teve de lidar com a revelação de dezoito casos de assédio sexual, a consequente troca de diversos membros julgadores — incluindo Sara Danius, até então secretária permanente — e o cancelamento do Nobel naquele ano. Depois de tudo isso, imaginava-se que o prêmio buscaria fugir de controvérsias. Em outubro passado, o austríaco Peter Handke foi proclamado o vencedor de 2019 (o Nobel referente a 2018 coube à polonesa Olga Tokarczuk). Terá sido ele uma escolha segura? Haveria bons motivos para pensar que sim. Afinal, trata-se de um escritor imerso em intenso conflito com a própria linguagem e com a natureza de seu ofício, um criador ousado desde suas primeiras publicações (a peça de estreia, de 1969, intitula-se Ofendendo o Público). Além do mais, Handke tem seu nome associado à rica produção cinematográfica do alemão Wim Wenders — o roteiro do clássico Asas do Desejo, de 1987, foi escrito em parceria com o autor, cujo romance O Medo do Goleiro diante do Pênalti também serviu de base para o filme homônimo.

A impressão, contudo, não poderia ser mais equivocada: a decisão do Nobel foi vigorosamente criticada não apenas pelos escritores e críticos engajados em bandeiras do progressismo vigente (“mais um homem branco europeu a vencer o Nobel” não foi uma observação isolada à época). Handke foi um peculiar, porém ardoroso, defensor do genocida Slobodan Milosevic, tendo não só comparecido a seu julgamento em Haia como ido ao funeral dele, em 2006, para prestar homenagem. As motivações de sua defesa do infame “Carniceiro dos Bálcãs” condenado por crimes de guerra que incluem o assassinato de 340 pessoas continuam um tanto obscuras. A hipótese mais plausível é que Handke tenha tomado as dores de seus antepassados na região. A mãe dele era eslovena e, ao longo dos anos 90, enquanto se desenrolava o conflito na região, o escritor austríaco viu-se tomado por um fervor nacionalista inusual pela terra materna, alegando até mesmo que a minoria muçulmana de Sarajevo teria cometido uma espécie de “autogenocídio” só para culpar os sérvios.

ENSAIO SOBRE A JUKEBOX, 
de Peter Handke (tradução de
Luis S. Krausz; Estação Liberdade;
112 páginas; 38 reais) (./.)

Sua literatura, contudo, nunca foi contaminada por nenhum tipo de agenda política. Considere-se o caso de Ensaio sobre o Louco por Cogumelos, recém-lançado no país. Ao final da obra, o narrador descreve os passos que vai dando ao lado de seu arruinado amigo, o sujeito “louco por cogumelos” de que fala o título. É como se ambos se arrastassem, em vez de caminhar, como um trem lento que nunca atingisse sua velocidade: “E me lembrei do que disse alguém sobre meus Ensaios: ‘Como um trem levando leite no alvorecer’. E assim nos arrastávamos. Arrastávamos, arrastávamos, arrastávamos”. O trecho pode não servir de incentivo ao leitor contemporâneo, cujos ritmos preferenciais definitivamente são outros. Mas é uma amostra generosa da carpintaria do autor. A essência de sua obra fica registrada nessa imagem: o foco na reflexão sobre a própria escrita; os elementos autobiográficos convertidos em matéria de industriosa criação literária; a observação poética revigorante da banalidade cotidiana e das paisagens que convidam à descrição.

Dos romances mais experimentais às obras dramáticas ousadas, Handke permaneceu fiel à literatura, não à política. Assim como o Ensaio sobre o Louco por Cogumelos, outro livro que acaba de ganhar tradução nacional reafirma o comprometimento absoluto com a experimentação artística. Ensaio sobre a Jukebox não exibe o brilho de suas obras literárias mais célebres, ou o lirismo cintilante de alguns de seus roteiros. É um exercício de metanarrativa de aparente facilidade e leveza: um escritor de língua alemã instalado em uma isolada e fria cidade espanhola durante um rigoroso inverno prepara-se para escrever um ensaio sobre este objeto retrô demarcado no imaginário de várias gerações, a jukebox. Como leitores, acompanhamos o esforço do narrador para ordenar o mundo à sua volta numa mistura de memória e percepção momentânea dos fatos, tudo unificado pelo papel dessas caixas musicais tão em voga nos anos do pós-guerra. A leveza e a simplicidade da leitura, contudo, são enganosas: o errático escritor, afinal, revela-se incapaz de produzir o tal ensaio. Resta ao perplexo narrador ir registrando cada elemento físico e paisagístico do mundo ao seu redor enquanto tateia em busca de alguma direção para sua escrita. E o leitor vai sendo carregado junto com ele nessa enigmática mas envolvente divagação — até descobrir, ao final do percurso, que a sina do personagem contém um ensinamento universal: todo esforço para alcançar a realidade plena está fadado ao fracasso.

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ENSAIO SOBRE O LOUCO POR COGUMELOS, de Peter Handke (tradução de Augusto Rodrigues; Estação Liberdade; 160 páginas; 44 reais) (./.)

Não menos fugidia é a lição que se extrai do Ensaio sobre o Louco por Cogumelos. O leitor caminha — ou melhor, “arrasta-se” — à procura de um chão firme para acompanhar a trajetória do singular protagonista, um jurista consumido por sua obsessão por cogumelos, esculpindo sua personalidade por meio da busca incessante. A narrativa aqui revela contornos mais concretos: é possível demarcar uma cronologia sobre o personagem, da infância à vida adulta, passando por sua carreira de sucesso e pelo ocaso. Com maestria, Handke põe o leitor onde deseja: no meio de sua própria floresta, não em busca dos cogumelos de um louco, mas de sua palavra e de seus sentidos. Nesses exercícios filosóficos, literários e de pendores autobiográficos, “o tempo na Terra se nos torna longo”, como se dá com o louco dos cogumelos. É irônico que um autor de atributos tão incontestáveis tenha se revelado um Nobel tão incômodo.

Publicado em VEJA de 29 de janeiro de 2020, edição nº 2671

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