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Del Toro: ‘Falar de amor é posição mais radical que se pode ter’

Mexicano se abre em ‘A Forma da Água’, que levou quatro Oscar e se tornou o grande vencedor da festa neste domingo e segue em cartaz no Brasil

Por Mariane Morisawa, de Los Angeles
Atualizado em 6 mar 2018, 16h48 - Publicado em 6 mar 2018, 16h37

Guillermo del Toro sabe que A Forma da Água é diferente dos seus demais filmes, seja Hellboy (2004), O Labirinto do Fauno (2006) ou Círculo de Fogo (2013). O cineasta, que sempre passa a impressão de ser boa praça, aberto, engraçado, costuma fazer filmes de belo visual, mas um pouco resguardados em termos de emoção. Não é o caso de A Forma da Água, uma fábula amorosa passada em 1962 que concorreu a 13 Oscar e faturou quatro, incluindo os de melhor filme e diretor. O longa traz a faxineira muda Elisa (Sally Hawkings), que se apaixona pela criatura anfíbia (Doug Jones) aprisionada na subterrânea instalação do governo onde ela trabalha.

Elisa é cercada de amigos tão marginalizados quanto ela, como a também faxineira negra Zelda (Octavia Spencer) e o pintor que esconde sua homossexualidade Giles (Richard Jenkins). “Todos os meus outros filmes são de uma forma ou de outra sobre perda e melancolia. Este é o primeiro positivo, vital, amoroso, abrangente”, disse Del Toro a VEJA em entrevista antes do Oscar, em Los Angeles.

O mexicano de 53 anos, que ganhou também o Globo de Ouro de direção, vive um momento de consagração, seguindo os passos de dois amigos conterrâneos — de Alfonso Cuarón, vencedor em 2014 por Gravidade, e Alejandro González Iñárritu, ganhador em 2015 por Birdman e em 2016 por O Regresso. Del Toro afirmou que não há competição entre eles, conhecidos como “os três amigos” – ele conhece Cuarón há 30 anos. “Continuamos dando palpite um no trabalho dos outros”, contou.

Outro amigo de longa data é James Cameron, que o ajudou nos anos 1990 num período difícil, quando seu pai foi sequestrado no México, o que motivou sua mudança com sua mulher para os Estados Unidos, onde criou as duas filhas.

De certa maneira, eu me permiti expirar. Todos os meus outros filmes são de uma forma ou de outra sobre perda e melancolia. Este é o primeiro positivo, vital, amoroso, abrangente. Tem um coração que ama a despeito de tudo

Apaixonado por monstros desde pequeno, ele sempre torceu pelos “outros”. E é como se vê no mundo muitas vezes. Talvez por isso, apesar de ter assistido ao filme centenas de vezes a esse ponto, ainda é capaz de chorar em três momentos – e até ao falar deles, levando alguns segundos para se recompor.

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Leia a seguir os principais trechos da conversa:

 

A Forma da Água parece ser seu filme mais pessoal, em que você se expõe mais abertamente. Concorda? Sim. Antes de começar o filme formalmente, fiz algo inédito para mim. Parei e me perguntei como ser humano, não como cineasta: “O que você vai fazer que não fez antes? Você fez nove filmes, o que vai fazer de diferente? Porque, se você vai fazer o que já fez nove vezes, para que fazer o décimo?”. E disse para mim mesmo que ia me permitir fazer coisas que me dessem medo e que não tinha feito antes, em termos de tom, de história. De certa maneira, eu me permiti expirar. Todos os meus outros filmes são de uma forma ou de outra sobre perda e melancolia. Este é o primeiro positivo, vital, amoroso, abrangente. Tem um coração que ama a despeito de tudo. Os outros longas todos se desenvolviam na perda e na dor. Era como a poesia do cemitério. E este é a favor da vida. Isso dá muito medo, porque te deixa muito vulnerável. É como declarar seus sentimentos por alguém, você sempre corre o risco do ridículo. O filme tinha tantos momentos que não funcionavam no papel, e eu tive de dizer que a gente ia conseguir. Os atores e chefes de departamento todos se esforçaram e conseguiram.

Acha que tem a ver com seu momento pessoal ou do mundo? As duas coisas. Meu momento é o momento do mundo porque meus filmes refletem como vejo o mundo. Como latino-americano, como mexicano, senti ser “o outro” a maior parte da minha vida, de muitas formas. E pessoalmente estava vindo de cinco anos muito sombrios, profissional e pessoalmente. Queria reformular quem eu era no mundo. Fiz isso com o filme.

O filme também evita o cinismo de todas as formas, o que é raro ao se falar de amor hoje em dia, não? Sim. Falar de amor abertamente, sinceramente, é a posição mais radical que se pode ter. Porque quase todo o mundo fala de amor permeado de cinismo. Claro que se pode falar de decepção, especialmente no caso do amor romântico. O filme vai além do amor romântico – é sobre amizade, afinidade, empatia, juntar-se enquanto grupo de pessoas marginalizadas. Falar disso a partir das nossas fraquezas, das nossas vulnerabilidades, é algo perigoso em termos de narrativa. É quase punk. É como se tornar punk, é contra tudo.

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Queria reverter também a síndrome de Estocolmo de ‘A Bela e a Fera’, aquela coisa de que quem a aprisiona é seu amor. E a história tem a pior ideia do mundo: vou transformá-lo, e ele vai se apaixonar por mim. Porque amor não é transformação, mas compreensão

Há um momento em que Elisa e Giles assistem Carmen Miranda. Por quê? O filme acontece em 1962, que é um momento muito interessante para mim. É quando a América se inventa midiaticamente. Quando define sua identidade pela publicidade, outdoors, séries de televisão, cinema. Queria mostrar a confluência dessas coisas por meio de personagens diferentes. Giles costumava pintar as propagandas, e agora a fotografia tomou conta. A televisão não representa o que os Estados Unidos são. Queria algo do passado que trouxesse a alegria do musical que vai estar presente depois no número musical. Como latino, sei que Carmen Miranda é uma fabricação, mas também conheço a alegria vinda de Chica Chica Boom Chic. 1962 é um período idealizado dos Estados Unidos. As pessoas pensam nessa época como sinônimo de afluência, vida no subúrbio, famílias perfeitas, mas na realidade foi muito divisora, com discriminação por causa de raça, gênero, orientação sexual. Por isso resolvi falar daquele tempo agora, quando querem fazer a América ser grande novamente. Era ótimo para quem era homem branco e heterossexual. Só para eles.

Você é apaixonado por monstros desde criança, e esta ideia veio da sua infância, de quando assistiu a O Monstro da Lagoa Negra e achou que a criatura tinha de ficar com a garota, certo? Sim. Mais importante que isso, pensei muito em A Bela e a Fera, porque queria reverter a maneira como essas histórias são criadas normalmente. Nesses contos, a princesa precisa ter uma perfeição, uma pureza e uma beleza que são muito padrão, que não incluem uma dimensão sexual, por exemplo, ou intimidade, ou vulnerabilidade. É um paradigma da perfeição social. E a Fera precisa se conformar ao modelo de príncipe para consumar o romance. Queria reverter também a síndrome de Estocolmo de A Bela e a Fera, aquela coisa de que quem a aprisiona é seu amor. E a história tem a pior ideia do mundo: vou transformá-lo, e ele vai se apaixonar por mim. Porque amor não é transformação, mas compreensão. É isso que A Forma da Água quer dizer: eles podem amar um ao outro pelo que são realmente? E a resposta é sim.

Quando eu era criança, todo o mundo fazia cavalos, casas, galinhas de barro. E eu fazia esqueletos. Todo o mundo tirava 10, e eu tirava 0

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Um monstro muitas vezes é percebido como a ameaça. Mas no seu caso não costuma ser assim. Você se identifica com o monstro? Os contos de fada são pró-status quo ou anárquicos. O terror pode ser pró-sistema ou contra o sistema. O monstro pode ser um monstro, ou o monstro pode ser nós. Ou o monstro é vulnerável, que é minha inclinação particular. Fui criado católico, e é uma religião cheia de regras sobre o que é bom e o que é ruim. As coisas que te levam para o inferno ou para o céu. Eles oferecem um modelo de perfeição impossível de seguir. É inumano. Os monstros me mostraram ser imperfeições que respiram e andam. Que eram vulneráveis e cativantes. Queria que a criatura de Frankenstein encontrasse sua noiva. Que o lobisomem ficasse livre na floresta, sem ser morto. Que King Kong destruísse todos os aviões. Eu torcia pelos “outros”. E daí vêm meus filmes.

As pessoas entendiam por que você torcia para o monstro? Foi difícil até fazer os filmes. As instituições estatais que apoiam o cinema não queriam saber do meu primeiro filme. Levou quatro anos para convencê-los a dar um financiamento pequeno. Eles diziam: “Por que vamos financiar um filme de vampiro?”. E eu respondia: “Porque há poesia, arte, beleza nele”. Quando eu era criança, todo o mundo fazia cavalos, casas, galinhas de barro. E eu fazia esqueletos. Todo o mundo tirava 10, e eu tirava 0. Mas continuei leal a minha vida toda ao que acredito conter poesia, profundidade, filosofia. Sempre sustentei que havia um preconceito. Por isso esta temporada de premiações tem sido tão importante, porque tivemos Corra! e A Forma da Água no páreo. É um marco.

Seus amigos Alfonso Cuarón e Alejandro González Iñárritu ganharam seus Oscar. Acha que não concorreu antes por causa do tipo de filme que faz? Eu me lembro que, com O Labirinto do Fauno, um filme do qual me orgulho, que considero um conto de fadas que resistiu bem ao tempo, houve uma situação em que ele foi desprezado por ser fantasia. E para mim a fantasia é o gênero mais político que existe. Intencionalmente ou não, revela as verdades mais essenciais da humanidade, porque sempre expressamos as coisas mais importantes por parábolas. Esse é um traço comum de toda a humanidade. Quando falamos do seu vizinho ou do seu rei, usamos a crônica realista. Mas, se falamos dos deuses ou do destino, usamos a fábula. Porque a fábula e a parábola nos permitem entender verdades maiores. Mas acho que está chegando o momento em que a fantasia é levada a sério. Esperei minha vida inteira por isso.

Foi ótimo, aliás, aquele momento no Globo de Ouro em que você pediu para a orquestra parar de tocar para que você pudesse terminar seu discurso. (Risos) Acho que é o ano de dizermos o que pensamos! Vendo tantas mulheres tendo a coragem de dizer o que pensam, você tem de fazer o mesmo da maneira como puder!

Para mim, a fantasia é o gênero mais político que existe. Intencionalmente ou não, revela as verdades mais essenciais da humanidade, porque sempre expressamos as coisas mais importantes por parábolas

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Então, você não ficou chateado quando a Natalie Portman, na apresentação, disse: “Aqui estão os indicados, todos homens”? Não, eu gostei! As premiações de que gosto como espectador é quando as coisas saem do roteiro. Não vejo graça nas piadinhas. Gosto de realidade. E gosto quando as pessoas falam da sua realidade. Tem gente que acha que temporada de premiação não é isso. Para mim é o oposto, é a hora de falar suas verdades. Porque é o momento breve em que o mundo presta atenção no cinema e no que temos a dizer como grupo. Eu gostei. Acho a alternativa – fingir que nada está acontecendo – impensável no momento. Vamos falar sobre o que precisa ser dito. Quero falar dos meus monstros e do gênero e quero reconhecer as mulheres na minha mesa que me ajudaram, me inspiraram e criaram comigo. Foi o que fiz. O que estamos vivendo agora é uma oportunidade. Estamos deixando fora da conversa metade da população. Estamos num monólogo há anos, que é muito chato. Minhas colaborações com mulheres foram as mais recompensadoras para mim. Temos de mudar o paradigma. Os homens têm chance, finalmente, de se abrir para uma conversa completa.

Em relação aos prêmios, há uma competição entre você, Alfonso Cuarón e Alejandro González Iñárritu? Não! É bem o oposto. Nós três concorremos com O Labirinto do Fauno, Babel e Filhos da Esperança em 2006. Quando nenhum de nós ganhou os prêmios principais a que concorríamos, achamos ter uma responsabilidade histórica de um dia ganharmos. Uns anos depois, quando o Alfonso ganhou por Gravidade, minha mãe ligou e disse: “Seu irmão ganhou”. E senti a mesma coisa. Também me senti aliviado da pressão! Aí Alejandro ganhou por Birdman e depois por O Regresso. E no caminho todo, ajudamos um ao outro.

Eles também acharam que este filme era especial para você? Eu posso dizer que vi o filme na sala de edição do Alfonso na Itália, onde ele está editando seu novo longa. E no fim estávamos os dois chorando. Ele me abraçou e disse que nunca achou que este filme fosse possível. Quando ele leu o roteiro, não pensou que tinha como existir. E ele ficou muito emocionado. Eu também. Conheço o Alfonso há 30 anos. E foi a reação mais profunda que ele teve a um dos meus trabalhos. Pode ser que aconteça de novo um dia ou pode ser que nunca mais, então é preciso valorizar este momento. Tenho outro desses filmes em mim? Não sei. Talvez sim, talvez não. Não dá para saber.

Isso dá medo? É disso que a vida se trata. A beleza da vida é a incerteza. Acho que a certeza nos destrói. As duas palavras que mais odeio são conforto e conveniência. Quando um produto diz “para sua conveniência”, tenho medo.

Estamos deixando fora da conversa metade da população. Estamos num monólogo há anos, que é muito chato. Minhas colaborações com mulheres foram as mais recompensadoras para mim. Temos de mudar o paradigma. Os homens têm chance, finalmente, de se abrir para uma conversa completa

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Parece o filme de que necessitamos agora. Foi como me senti. Mas isso para mim não é conforto, que existe além das necessidades básicas. Reconfortante é outra coisa e significa que existe uma ferida, e algo vem tratá-la e dizer que tudo vai ficar bem. Foi o que senti que este filme podia ser: reconfortante. Porque todo o dia acordamos e algo terrível aconteceu. Pela primeira vez na minha vida, eu tenho medo de abrir o jornal ou pesquisar na internet. Porque penso: O que foi destruído agora? Que lugar explodiu? Quantas pessoas morreram? Como caímos nessa desgraça? Porque eu acredito em graça. Para mim é um estado que deveria ser natural para os seres humanos como é para os animais. E isso não significa pureza ou inocência. Mas existe um estado de graça, que normalmente você não reconhece até perder. É aí que você percebe que tinha. E todo dia, das formas mais grosseiras e catastróficas decaímos desse estado de graça. Acho realmente que muito raramente na vida é possível atingir um momento de graça com sua arte. E não é porque você fez algo certo, é a confluência de muitos fatores. Mas estou emocionado por certos momentos de graça deste filme, que me emocionam muito genuína e profundamente. Eu ainda choro. Choro com a beleza.

Quais cenas fazem você chorar? Chorava mais no começo, claro. Agora, depois de ter visto 500 vezes, ainda choro em três momentos – e sobre um deles pode ser que não consiga falar. Uma é quando ela fala como a criatura olha para ela (começa a chorar). A outra é quando ele volta e diz que vai ajudar. E a terceira é o final. Ainda fico emocionado.

James Cameron disse outro dia que adora A Forma da Água, mas acha que você não deu o devido valor ao descrevê-lo como um filme de monstro. Você foi modesto ou ficou com medo de falar sobre a dimensão política, de falar dos marginalizados? Não foi uma decisão consciente. O que o filme significa para mim é tão profundo, íntimo e poético e cuidadosamente construído que acho que eu penso, erradamente, ser evidente. Por isso não sinto que precise esclarecer. Mas acho que ele está certo, talvez devesse expressar dessa maneira. Só que não está na minha natureza, tenho de me forçar um pouco. Acabo confiando no estúdio, e os materiais do filme são belíssimos. Como disse, este é o momento de falar a nossa verdade. Pode ser que menos pessoas vão ver. Que seja. É a nossa verdade. A minha é que existe um lugar no meu coração em que a poesia só pode ser alcançada por monstros. E eu tenho de dizer isso.

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