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Conservadorismo e cultura pop: um diálogo possível

Em tempos de obscurantismo e polarização, conversar com os 'conservadores' é preciso. E o mundo do entretenimento está aí para ajudar

Por Maria Clara Vieira Atualizado em 13 set 2019, 17h58 - Publicado em 13 set 2019, 17h58

“Cristão, conservador e de direita.” Quem ainda não esbarrou em um perfil virtual definido por esta tríade de adjetivos, certamente está por fora do turbilhão das redes sociais. Via de regra, são estes paladinos da moral e dos bons costumes os que compõem a linha de frente de qualquer ataque aos discursos progressistas ou, como se convencionou chamar, politicamente corretos que permeiam o mundo moderno. Os olhos (e dedos) atentos destes templários contemporâneos escrutinam as redes, as ruas, a política, a imprensa e, claro, as artes. Desta varredura, não escapam músicas, filmes, séries ou gibis. Cai na conta do “conservadorismo“, é verdade, muitos dos episódios de repressão ou deliberada censura que marcaram a história da cultura pop: desde a proibição das HQs de Batman e Robin, acusados de incentivar a homossexualidade na década de 1950, passando pela recente canetada do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, contra um quadrinho dos Vingadores à venda na Bienal, até a grita virtual de “quem lacra, não lucra” contra o filme Capitã Marvel (um sucesso de mais de 1 bilhão de dólares – vá entender). Lamentar a famigerada polarização das redes e os arroubos autoritários dos governantes, contudo, não contribui para o diálogo. Se os treze anos de um governo alinhado à esquerda no poder não deixaram dúvida de que há “esquerdas”; os tempos modernos abrem espaço para que se separe o joio do trigo na direita liberal e, sim, conservadora. Neste sentido, o sempre instigante, criativo e subversivo universo do entretenimento é matéria-prima de qualidade para uma discussão sobre o que significa, afinal, crer no conservadorismo – sob a ótica de quem estudou o assunto a fundo, sem rancores ideológicos.

Nas palavras do filósofo e teórico político inglês Michael Oakeshott, “ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, (…) o real ao possível, (…) o próximo ao distante, (…) o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à utópica”. Ressalte-se também que o próprio autor, uma das mais importantes referências teóricas do meio, afirma que o conservadorismo “não é uma crença nem uma doutrina, mas uma forma de ser e estar”. Trata-se, antes, de uma “inclinação a pensar e a comportar-se de determinada forma”. Daí a escrutinar filmes de super-herói, deixar de vacinar crianças e questionar a esfericidade da terra com a sanha de salvar a civilização ocidental do marxismo cultural, portanto, vai chão. Na prática, ser conservador é, a cada vez que alguém prometer “mudar tudo o que está aí”, questionar: “Mas vai mudar o que, exatamente? E vai botar o que no lugar? Isso é factível? Vai funcionar melhor do que o que já foi construído?” – e não responder, de imediato, que não se pode mudar nada. No campo político, portanto, o conservadorismo de Oakeshott propõe a preservação das instituições e a desconfiança dos “mitos”, dada a falibilidade humana. “O campo da cultura é mais fluido”, ressalta o crítico Dionisius Amêndola, mais alinhado ao lado destro da Força. “Olhar para a cultura pop com os olhos de um conservador é buscar discussões e dilemas que transcendem sua época, que tratam de aspectos da natura do homem que ultrapassam contextos históricos e políticos”, explica.

Vide o universo dos recém-defenestrados Vingadores. Quem maratonou a saga de 22 filmes antes de prestigiar o “Ultimato”, passou pelo confronto entre o ex-soldado Steve Rogers e o multibilionário Tony Stark. Capitão América: Guerra Civil traz no seu cerne uma bela reflexão de caráter conservador, nos parâmetros do filósofo britânico, quando coloca frente a frente um Homem de Ferro culpado pela destruição recente da cidade de Nova York e disposto a submeter as ações de todos os super-heróis à aprovação de órgãos governamentais, com um Capitão obstinado a defender a liberdade pessoal de cada colega, dada sua desconfiança em relação à centralização do poder. “Como um soldado que foi congelado na década de 1940 e acordou nos dias de hoje, Steve também nos mostra o lado bom do conservadorismo. É um personagem querido e admirado por traços de caráter que são os mesmos desde que nos entendemos por humanidade”, explica Amêndola.

Do lado dos vilões, o perigo das ideologias é bem representado pelo titã Thanos, autor de um plano bem-intencionado para levar o universo à “felicidade utópica” mencionada por Oakeshott: eliminar metade dos seres vivos. O mundo das séries de TV também possui seus próprios ideólogos, apaixonadamente movidos pelas próprias visões do mundo perfeito e dispostos a queimar opositores, ex-aliados de longa data e o reino inteiro de lambuja em nome da paz perpétua. Estes ditadores, aliás, despertam paixões viscerais em seus seguidores que, muitas vezes, custam a se perceber seduzidos por um projeto totalitário. Soa familiar? Além destas reflexões, a multipremiada Game of Thrones é um oceano de boas referências conservadoras ao abordar a importância de se conhecer o passado na caminhada para o futuro, através da eleição do rei Bran, e, sim, a importância da família – não necessariamente a “tradicional brasileira” vestida de verde e amarelo na praia de Copacabana, mas os pequenos grupos formados por profundos laços de criação que, frente aos ventos do inverno, funcionam como uma muralha de certezas. A família que Theon Greyjoy (Alfie Allen) percebeu ter traído. Outra produção de destaque que discute a natureza conservadora do homem é The Walking Dead, dado que, em um mundo onde boa parte da humanidade sucumbiu ao domínio de zumbis, os restantes devem partir de seus próprios sistemas de crença para definir questões importantes da vida em comunidade que remontam à função das instituições: quem fará a justiça? Quem é o responsável pela defesa do grupo? Quem deve portar armas? E assim por diante.

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Toy Story 3, da Disney Pixar
Toy Story 3, da Pixar: o terror que sentimos diante das mudanças (Divulgação/VEJA)

Até mesmo o universo dos desenhos animados tem muito a oferecer neste diálogo sobre o conservadorismo para além do senso comum. A sempre vanguardista Pixar é campeã na abordagem de temas que transcendem gerações, crenças e posições políticas. Afinal, sobre o que são as aventuras do cowboy Woody, do patrulheiro espacial Buzz Lightyear e dos outros brinquedos do menino Andy, senão sobre o terror que todos sentimos frente às grandes mudanças e a importância das amizades e do senso de comunidade para preservar o que realmente importa na hora de seguir adiante? O terceiro filme da saga Toy Story traz, ainda, um importante ponto de virada para se debater a diferença entre a “disposição conservadora” de Oakshott e o reacionarismo sombrio da atualidade na forma de Lotso, o ursinho-vilão que domina uma creche na qual os brinquedos podem viver para sempre em meio às crianças, sem nunca enfrentar o drama do esquecimento. “Ele nada mais é do que um ditador reacionário, que quer criar uma realidade falsa onde todos vivem presos a um passado ideal ao invés de enfrentar as agruras do futuro”, explica Amêndola. Há, ao final, essa lição sobre o conservadorismo “fluido”: é preciso manter o essencial para enfrentar o mundo novo. Por fim, sobre o que é a emocionante história de Viva – A vida é uma festa, senão a definição de Edmund Burke, o “pai” do conservadorismo moderno, de que a sociedade é uma “(…) associação entre os vivos, os mortos e os não nascidos”?

Por falar em Burke, cabe também a ele o argumento capaz de acalmar os ânimos dos que se escandalizam com cada representação artística de discursos ditos progressistas: “Se uma grande mudança é para ser feita nos assuntos humanos, as mentes dos homens adaptar-se-ão a ela, as opiniões e os sentimentos gerais confluirão para esse destino”. Prossegue o filósofo, para o desespero dos aficionados pelo passado: “Todos os medos, todas as esperanças a seguirão; e aqueles que persistirem em se opor a esta poderosa corrente nos assuntos humanos parecerão resistir aos próprios decretos da Providência e não tanto aos meros desígnios dos homens. Não serão resolutos e firmes, mas perversos e obstinados”. Não se sabe, é claro, o que o inglês que previu os tempos de terror pós-Revolução Francesa diria sobre o quadrinho protagonista da celeuma na Bienal. Contudo, censura e coação da representação artística de um público minoritário em um material destinado a jovens adultos não parecem ser do feitio de um alguém que toma como inevitáveis as “mudanças do espírito do tempo”. Concorde-se ou não com o conservadorismo prudente de Burke e Oakeshott, uma época na qual governantes e aspirantes se estapeiam para abocanhar o dito “eleitorado conservador” exige que os amantes da democracia sejam capazes de examinar, com cuidado e sem preconceitos, os sentimentos e preocupações que movem parte deste público (exclua-se aqui, é claro, a ala efetivamente retrógrada, violenta e autoritária) em prol do diálogo. E muitas destas boas conversas estão à distância de alguns cliques no controle remoto.

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