Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Cometa exótico do rock

Esse é o Freddie Mercury que o ator Rami Malek encarna com entrega assombrosa na às vezes demagógica mas irresistível cinebiografia 'Bohemian Rhapsody'

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 2 nov 2018, 07h00 - Publicado em 2 nov 2018, 07h00

Para os adolescentes ligados em rock, a sensação era de que um dia o Queen não estava lá e, no dia seguinte, já estava em toda parte: poucas vezes na história do pop se registrou uma ascensão tão veloz e repentina — e um auge tão duradouro e consistente. O quarteto formado em 1971, em Londres, não deixou de percorrer a via-­crúcis das bandas iniciantes, dos shows em palcos obscuros às fitas-­demonstração bancadas com as próprias economias. Mas quando estourou, com o álbum de estreia, em 1973, foi de maneira apoteótica: além do seu som potente, texturizado e melódico, de recorte algo kitsch mas irresistível, o Queen era liderado por um dos maiores performers já vistos — Freddie Mercury, um vocalista nascido para as arenas, o único espaço capaz de fazer jus a sua voz extraordinária e seu carisma fulgurante. Quando Mercury estava no palco, a audiência sorvia dele. Em Bohemian Rhapsody (Estados Unidos/Inglaterra, 2018), já em cartaz no país, o ator Rami Malek encarna com brilhantismo o jovem carregador de bagagens do aeroporto de Heathrow que virou o rei (ou a rainha) dos estádios: em um bar, apresentando-se pela primeira vez na companhia de Brian May (Gwilym Lee), Roger Taylor (Ben Hardy) e John Deacon (Joseph Mazzello), Mercury apanha para se entender com o suporte do microfone — mas então, quando a falta de jeito está para descambar em vexame, Mercury enfim põe o microfone no devido lugar, como quem doma um tigre. Quem manda ali, não há dúvida, é ele.

A cena ilustra bem o espírito de Bohemian Rhapsody e, de certa forma, o espírito do próprio Queen. É novelesco e até popularesco. Mas, assim como a música da banda, é feito com uma sinceridade que se percebe genuína — e, por isso, como os hits do Queen, é frequentemente eletrizante e emocionante. É uma biografia repleta de liberdades factuais e também pudica no que toca aos excessos sexuais e químicos de Mercury, um símbolo da liberação gay. É de ponta a ponta, enfim, uma celebração do júbilo que Mercury sentia em estar diante de uma multidão e tê-la sob seu comando, do prazer com que explorava a voz de alcance impressionante (o que ele creditava aos incisivos a mais, que alargavam sua arcada) e da relação estreita, embora cheia de atrito, que ele viveu com os companheiros de banda. É também um tributo à coesão do Queen, nunca colocado em segundo plano pelo roteiro, e à convicção com que Mercury defendia seu trabalho — o que rende uma cena deliciosa em que o comediante Mike Myers, interpretando o executivo da gravadora EMI Ray Foster, desdenha da ideia de promover a longa e rocambolesca Bohemian Rhapsody nas rádios. “Precisamos de uma faixa que faça a garotada aumentar o som do carro e sacudir a cabeça”, diz Foster — uma brincadeira com a cena antológica do filme Quanto Mais Idiota Melhor na qual Myers e Dana Carvey cantam Bohemian Rhapsody do começo ao fim, sacudindo a cabeça, dentro de um carro, com o volume no máximo.

BARROCOS –  Hardy, Lee, Mazzello e Malek encarnam o Queen: coesão e atrito (Alex Bailey/Twentieth Century Fox Film/.)

Para reforçar o tom de tributo, Bohemian Rhapsody escolhe terminar no momento de glória absoluta do Queen, com uma recriação perfeita — e de arrepiar — do show do grupo para o Live Aid, no estádio londrino de Wembley, em julho de 1985, tido como a mais memorável apresentação de uma banda de rock. (Essa foi a primeira sequência rodada pelo diretor Bryan Singer, e é cerzida com costura invisível a imagens reais do Queen no palco. Singer seria depois demitido a três semanas do fim das filmagens, e substituído por Dexter Fletcher, em razão de uma briga feia com Malek.) Mais do que tudo, o show significava, para ele, uma reconciliação com os amigos, depois de anos de estranhamento musical e pessoal, e um reencontro com a criatura que sempre desejara ser mas perdera de vista durante um hiato do Queen, dedicado a incursões-solo e ao comportamento autodestrutivo.

Continua após a publicidade

O acanhamento do filme em sondar o lado selvagem de Mercury provocou a desistência do primeiro ator escolhido para o papel, o Sacha Baron Cohen de Borat. A substituição, porém, resultou estrondosa. O filho de egípcios Rami Malek, da série Mr. Robot, deixa-se tomar pela personalidade de Mercury com uma entrega assombrosa. Malek enverga com ar de desafio a prótese que reproduz o aspecto de limpa-trilhos dos dentes superiores do cantor, diverte-se tanto quanto Mercury com o frisson que sua extravagância causava e sofre como ele sofria com suas contradições irreconciliáveis. A mais nítida delas é a paixão por Mary Austin (Lucy Boynton), que conheceu na época em que se juntou ao Queen e que, a despeito da incompatibilidade sexual que a certa altura se tornou incontornável, foi um de seus dois grandes amores (o outro foi Jim Hutton, com quem ele viveu até sua morte; Mary continuou a ser sua melhor amiga, e herdou boa parte de sua fortuna). Muito acertadamente, Bohemian Rhapsody omite o longo trecho de doença que se seguiria do show em Wembley até a morte do cantor em decorrência da aids, em 1991: este Mercury, o cometa exótico dos palcos, é o que o filme quer deixar na lembrança — e o que ganhou o direito de ser lembrado.


Teatro de revista com guitarra e bateria

SOBERANO ABSOLUTO –  Mercury em show de 1986: versão roqueira e ainda mais exuberante de uma Liza Minnelli (Denis O'Regan/Getty Images)

O Queen era rococó demais para o gosto do influente crítico Nick Kent, um apaixonado pelo primitivismo rude do rock. “Eles vão de encontro a tudo em que acredito”, escreveu na autobiografia. As letras miquelinas do quarteto formado por Freddie Mercury (vocais), Brian May (guitarra), Roger Taylor (bateria) e John Deacon (baixo) também não tinham estofo intelectual para cair no gosto de uma Rolling Stone — que ouviu um slogan fascista no refrão “we will rock you” (“vamos sacudir vocês”, em português). Mas são essas características tão odiadas por tantos críticos que tornaram o Queen uma das bandas mais emblemáticas da história do ­rock. Pomposo, grandiloquente, o quarteto inglês vivia no limite entre o teatro musical e o cabaré mais sem-vergonha. Embora tenha momentos de exibicionismo musical, o bom humor distanciou o som do Queen da ranhetice do rock progressivo que imperava quando o grupo surgiu, nos anos 70. O melhor retrato da banda é A Night at the Opera, de 1975. Famoso pelo sucesso Bohemian Rhapsody (que dá título à cinebiografia de Mercury), é teatro de revista empacotado em um álbum de rock.

Continua após a publicidade

A banda também era exuberante, e não só pelos figurinos de babados e quimonos de seu cantor. Os solos de May são delicados e barrocos, em contraste com a agressividade típica dos guitarristas de seu tempo. Taylor, na contramão, é uma versão exagerada da selvageria dos bateristas de rock — um instrumentista de golpes nervosos e pancadas extras no prato. Deacon sempre foi a única figura discreta em cena. E Freddie Mercury, claro, era a estrela — o artista que faz por merecer uma cinebiografia póstuma. Versão masculina (ou, quem sabe, mais feminina) de uma Liza Minnelli, era um cantor de alcance vocal absurdo e carisma de palco absoluto, um frontman capaz de magnetizar multidões — como se pôde ver nos shows no Rock in Rio, em janeiro de 1985, e no Live Aid, em julho do mesmo ano. Hoje se fala na sua “ambiguidade” sexual, mas o fato é que ele nunca escondeu suas preferências. No começo da carreira, disse a uma jornalista inglesa que era “tão gay quanto uma margarida”. Nunca houve dúvida sobre quem era a rainha do Queen.

Sérgio Martins

Publicado em VEJA de 7 de novembro de 2018, edição nº 2607

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.