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Brasileiro desafia best-sellers americanos com série sobre orixás

PJ Pereira, publicitário carioca que mora há dez anos nos EUA, figura há duas semanas na lista dos livros mais vendidos com uma fantasia baseada na mitologia africana trazida ao Brasil pelos escravos, ainda na colonização

Por Meire Kusumoto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 31 Maio 2015, 11h26

Entre Green, Doerr e Cass, apenas um sobrenome comum no Brasil se destaca na lista dos dez livros de ficção mais vendidos de VEJA desta semana: Pereira. Seu dono, o carioca Paulo Jorge, ou PJ, como é conhecido desde os 20 anos no mercado publicitário, conseguiu derrubar a hegemonia dos estrangeiros no ranking, que não via desde fevereiro um autor brasileiro voltado para adultos – no começo de maio, Paula Pimenta esteve na lista com o título teen Cinderela Pop (Galera Record). PJ Pereira, de 42 anos, segue Chico Buarque, que permaneceu dez semanas no ranking com O Irmão Alemão (Companhia das Letras), entre o final de 2014 e o começo deste ano. Mas, ao contrário do músico, que é uma celebridade por si só e revisitou o próprio passado para contar uma história, o ainda novato PJ foi mais longe. O livro que figura na lista, Deuses de Dois MundosO Livro da Morte (Da Boa Prosa, 338 páginas, 44,90 reais), encerra a trilogia que marca a sua estreia na literatura e que, desde 2013, vendeu cerca de 50.000 exemplares. E é um mergulho na mitologia africana, a origem de religiões como o candomblé e a umbanda, que, segundo o IBGE, reúnem apenas 0,3% da população.

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Formado em administração com especialização em marketing, PJ se tornou um publicitário bastante conhecido (e reconhecido) antes de se aventurar na literatura. Com um Emmy e quatro Grand Prix do Festival de Cannes no currículo, PJ foi um dos fundadores da AgênciaClick, a primeira especializada em marketing na internet do Brasil, da qual vendeu sua participação antes de ir para os Estados Unidos, em 2005, para dirigir a área de criação de uma das principais agências digitais do mundo, a AKPA, e fugir do trauma de um sequestro-relâmpago sofrido em São Paulo. Três anos depois, o publicitário se juntou ao colega Andrew O’Dell para fundar o braço americano do Grupo ABC, de Nizan Guanaes, a Pereira & O’Dell. “Foi graças ao meu trabalho que descobri as culturas africanas”, conta PJ.

Nascido e criado no Rio de Janeiro, cujas praias recebem centenas de oferendas para os orixás na virada do ano, PJ tinha aversão ao universo das tradições africanas. “Eu via como algo do demônio, horrível. Meus amigos e eu sempre dizíamos que no dia 1º de janeiro não se devia ir à praia porque tinha macumba.” O preconceito só começou a ser questionado anos mais tarde, no começo dos anos 2000, quando o publicitário se mudou para São Paulo e descobriu que um de seus colegas de trabalho, Zeno Millet, era filho da Mãe Cleusa e neto da Mãe Menininha do Gantois, um dos terreiros do candomblé mais importantes da Bahia. “O Zeno é uma pessoa que eu respeito muito. Pensei: ‘Se essa pessoa boa está envolvida com esse negócio, ou mentiram para mim a minha vida toda ou ele está mentindo agora’.”

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Decidido a descobrir quem dizia a verdade, PJ foi pesquisar as tradições africanas. “Entrei em contato com uma mitologia rica e senti como se tivessem me negado esse conhecimento. Sempre gostei e li muito sobre mitologia grega e romana e, da mitologia africana, que é tão importante na formação da cultura brasileira, eu não conhecia nada”, afirma. Daí veio a ideia de repassar esse conhecimento a outras pessoas que também eram leigas no assunto, com a ajuda de Zeno Millet, que o apresentou a cerca de 50 pessoas ligadas ao candomblé e à bibliografia do sociólogo Reginaldo Prandi, da Universidade de São Paulo (USP), um dos maiores especialistas em cultura africana no Brasil. Foi em uma conversa com o amigo, aliás, que surgiu a ideia de escrever um livro. “Depois de ler um título do Prandi sobre o jogo de búzios, fui atrás do Zeno. Perguntei: ‘Mas e se o jogo não der resposta?’. Ele me disse que sempre dava e eu insisti na pergunta. Ele respondeu: ‘Se não der, é porque alguma coisa muito séria está acontecendo. Vai ter gente apavorada com isso’.”

Em Deuses de Dois Mundos, PJ separa, em duas narrativas paralelas, a África ancestral e o Brasil dos dias atuais. Na África, retrata a preocupação de Orunmilá, o maior adivinho de todos os tempos, que se vê sem respostas ao jogar búzios. Já em São Paulo, um jornalista recebe uma missão dos orixás e se envolve com rituais que não compreende direito. Nos livros, há um pouco de ficção e um pouco de realidade embaladas em linguagem ágil e quase cinematográfica. “Eu conversava com muita gente do candomblé, lia muito a respeito e depois preenchia as lacunas que tinha com a minha imaginação. Eu dizia para eles que não queria saber segredos vetados a não-iniciados, não queria desrespeitar as regras. Se acertei alguma coisa que inventei, foi por acaso. Já me disseram que eu contei segredos que eu não deveria saber, só não sei que segredos são esses.”

Marketing digital – PJ Pereira terminou de escrever Deuses de Dois Mundos dez anos antes de lançar o primeiro livro. Em 2003, a história estava reunida em um único volume de 900 páginas, que o publicitário ofereceu a diversas editoras, sem sucesso. Como resposta, ele ouvia que não havia mercado para uma história como aquela que queria contar. “Em 2013, um dos meus trabalhos publicitários foi indicado ao Emmy e pensei que talvez os editores se interessassem por um escritor que tivesse chegado à final do prêmio”, conta. O Da Boa Prosa, selo da Livros de Safra, aceitou o original, mas o dividiu em dois volumes: Deuses de Dois Mundos – O Livro do Silêncio, lançado naquele mesmo ano, e Deuses de Dois Mundos – O Livro da Traição, que chegou às livrarias em 2014. Como ainda havia história para contar, PJ escreveu mais um volume, lançado em maio deste ano.

Antes de o primeiro livro ser publicado, a editora organizou uma reunião entre o escritor e alguns donos de redes de livrarias. O da Livraria Cultura contou ao escritor que os leitores decidiam o que queriam ler no Facebook, por indicação de amigos. “Fiquei tranquilo, porque conheço essa linguagem, sei operar no mundo das redes sociais. Era a minha primeira experiência como autor, mas não era a primeira vez que eu iria publicar um conteúdo on-line para as pessoas compartilharem”, afirma. Foi o boca-a-boca nas redes sociais que garantiu o espaço de Deuses de Dois Mundos na fila de leitura das pessoas. “Foi nas mídias sociais que o livro se fez. Algumas pessoas até reclamavam que queriam ler o livro, mas não o encontravam nas livrarias.”

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Mas, de acordo com ele, a leitura da trilogia não é uma tarefa simples para muitos de seus leitores. Alguns contaram ao autor ter lido quase que em segredo, por causa da temática. “Um leitor chegou a me dizer que não podia entrar no trabalho com a minha obra porque senão seria demitido, outra que a cunhada não admitia esse livro na casa dela, por isso teve que encapar os volumes”, conta. E, entre críticas feitas aos seus livros, encontrou também algumas surpresas. “Grande parte da crítica vem dos evangélicos, mas também há muitos que seguem essa religião e que vêm elogiar a série na minha página no Facebook, dizendo que ela os ajudou a entender melhor as tradições.”

Antes de chegar às livrarias brasileiras, a trilogia já tinha os seus direitos vendidos para a produtora multimídia The Alchemists, o que também pode ter ajudado em sua projeção no mercado editorial. “O dono da produtora, Mauricio Mota, disse que a proposta seria retirada se o livro fosse lançado antes de fecharmos negócio. Aceitei na hora e vendi o pacote de filme, série e graphic novel. Passei os últimos dois anos pensando nessa adaptação, se faríamos um filme ou uma série. Estamos experimentando roteiros ainda, mas é provável que seja um filme. Ainda não pensamos sobre a adaptação para os quadrinhos.”

O único brasileiro – A trilogia também pode ter sido impulsionada pelo boom da literatura fantástica no Brasil e no mundo, que viu nascer fenômenos como Harry Potter, de JK Rowling, Percy Jackson & os Olimpianos, de Rick Riordan, e As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R.R. Martin, base da série de sucesso da HBO Game of Thrones. “Metade dos meus leitores lê fantasia, a outra metade lê meus livros por influência religiosa. Essa metade que gosta de fantasia viu o renascimento do gênero nos últimos anos, principalmente depois de Harry Potter, uma série que abriu caminho para tudo o que veio depois. Acho que minha saga foi ajudada de pelo momento atual da literatura fantástica, sim”, confirma PJ.

Ao contrário de Harry Potter e Percy Jackson, que conquistaram principalmente o público infantil e adolescente, Deuses de Dois Mundos tem falado a leitores adultos. Pelas estatísticas fornecidas pelo Facebook, que mostram quem curte a página da série, os leitores são adultos, a maioria entre 25 e 65 anos. “Foi uma surpresa para mim, esperava que eles fossem mais novos. E cerca de 60% dos leitores são do sexo feminino, outra surpresa”, afirma o escritor.

Para PJ, ser o único brasileiro a figurar na lista de mais vendidos é alarmante para a literatura nacional. Antes dele, passaram poucos por ali, como o também carioca Eduardo Spohr, talvez o maior nome da fantasia nacional, ao lado de André Vianco – eles têm respectivamente, mais de 600.000 e 920.000 exemplares vendidos. “A tradução nunca é igual ao original, não tem o mesmo ritmo, é diferente. Eu acho alarmante e triste que tão poucos escritores brasileiros sejam lidos no Brasil. Não estou saindo em defesa dos meus pares aqui, mas a linguagem morre se o Brasil não lê livros escritos em português”, diz. “A indústria do entretenimento é uma das mais medrosas que existem. Quem trabalha com literatura tem uma missão, que é desenvolver a literatura nacional, trazer discussões interessantes. Muitos livreiros também dão mais destaque para os livros estrangeiros. O leitor escolhe aquilo a que é exposto.”

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